28/12/2013

...sermão da montanha

Sem rodeios. A declaração de Natal do Passos foi um brilhante exercício de hipocrisia política ao pior nível do melhor que os seus ghost writers sabem fazer. Diria que numa escala de mediocridade, o aviso imprudente da McDonald’s aos seus colaboradores, encontra-se num patamar mais elevado. A análise rigorosa da variação do número de novos postos criados vs desempregados fica para os think thank de cada trincheira . Penso que já gastei demasiado carvão sobre este tema.

“Existimos em Função do Futuro” 
Jean-Paul Sartre

Quando abri as páginas hoje de manhã veio-me à memória o travo amargo que pressenti nos últimos dias de 2012. Meu dito, meu feito. Este ano foi um verdadeiro desastre, a todos os níveis sociais. Apesar da tímida recuperação da economia, quando reparamos nos números (não basta ver!) e combinamos com a realidade, é por demais evidente que foi mais um ano em que os sacrifícios e o desespero de muitos esfumou-se completamente face à verdade dos factos. Não entrando com a estatística moldada pelo barro dos números, surge à cabeça um número extraordinariamente preocupante: um novo mínimo histórico no número de partos - menos de 80 mil partos. Para quem a demografia é algo semelhante a ciência oculta, o ritmo de envelhecimento da nossa população é desassombradamente mais penoso e fatal para o país do que a dívida! Pode-se culpar a austeridade, a fraca perspectiva de futuro e sobretudo a emigração da camada mais jovem da sociedade. Quando a taxa de renovação de gerações se aproxima do limiar de insustentabilidade, paulatinamente se desmaterializa o futuro de um país

Talvez fosse mais avisado o ministro das questões sociais ou ministra das depauperadas finanças dedicassem um pouco mais de tempo a questões da política demográfica e de incentivo à natalidade. O empenho e o proselitismo que devotam ao alívio das prestações sociais dos aposentados (último suporte de muitos casais jovens) e a incidência inebriante em políticas que visam liberalizar o despedimento ou o aumento do número de horas de trabalho, são exemplos perfeitos da inabilidade para tratar de um mal maior que nos vai afectar a médio/longo prazo. Vou lançar uma pergunta: quantas jovens empregadas arriscam hoje em dia engravidar?

“A dor tem um elemento de vazio” 
Emily Dickinson

Também não vou falar aqui no número de falências e insolvências. Todos sabemos interpretar os papéis de jornal colados nas montras ou o significado de um espaço vazio com cadeiras num mar de pó.

"O mundo é cego, e tu vens exactamente dele."
Dante Alighieri

Não vou falar no colossal aumento de impostos. O resultado aparente são 0,2% de diminuição no défice. Surge-me à ideia uma metáfora. Afinal o Gaspar tinha razão. Estava errado e cego.

"A estupidez humana é a única coisa que dá uma ideia do infinito."
Ernest Renan

Não é um relógio idealizado pelo irrevogável Portas que vai diferenciar o sucesso ou insucesso do drama final.  A tragédia promete continuar para lá da vida póstuma da cebola do Caldas. Qualquer relógio daqueles que se vendem no mercado da Praça de Espanha teria semelhante efeito cautelar. A ideia de uma contagem decrescente para o início de algo semelhante é prova provada que a demagogia é ainda uma ciência por explorar.

“Ser austero é não saber esconder que se tem pena de não ser amado” 
Fernando Pessoa

A austeridade, ou na semântica da maioria parlamentar, o ajustamento vieram para ficar, alheios ao sofrimento das pessoas, ou insensível à miséria que se propaga diariamente. Acredito que haja pessoas, cuja realidade próxima não lhes permita ver e sentir, o coro de silêncio e tristeza que se abate sobre milhares de famílias portuguesas, resignadas à evidência da pobreza. A pobreza, a tristeza é coisa que nestes dias não se sente, ou pelo menos anda amansada pela beleza da época. O Natal amolece a alma e desenterra a purpúrea generosidade que paira inóspita do interior de cada um de nós. Infelizmente a bondade da natureza humana é efémera, talvez Descartes tenha sido demasiado optimista quando a apelidou de generosidade da alma.

"Nessa encruzilhada do desejo e da necessidade, não deixes nada: não voltarás lá nunca mais."
Omar Khayyam

Apesar de todo o fel que as minhas palavras carregam, acredito que há um caminho a percorrer, um rumo que pode ser emendado, seja por quem chega de qualquer uma das estradas que conduzem à encruzilhada. Apesar de tudo há indícios, luzes ténues de um início de futuro. Confesso que a forma que nos conduziu até este ponto de não retorno, nunca foi do meu agrado nem a mais inteligente. Mas aqui estamos, aqui chegamos a esta sentença. Vale sempre a pena olhar para trás e tentar explicar às gerações futuras, os desígnios de décadas de incúria que conduziram ao aumento desproporcionado da desigualdade e pobreza. Não deixa de ser cómico e bizarro que as personagens e actores principais desta ópera bufa (chamar-lhe-ia tragédia grega, mas essa já está em cena no Mar Egeu!) sejam as mesmas, ou algumas delas, que hoje decidem e arbitram o destino e a orientação de todas as políticas no seu âmbito global. Os actores de ontem (fouding-fathers da democracia) são hoje espectadores e partes interessadas, que nos bastidores manipulam e definem o tom da revolta ou a pauta das leis. O Eça de Queirós escreveu um dia, e passo a citar: “a ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.”. Absolutamente actual. Não vale a pena identificar os culpados.

Eles autoproclamam-se, pois carecem de protagonismo.

“Ora a democracia cometeu, a meu ver, o erro de se inclinar algum tanto para Maquiavel, de ter apenas pluralizado os príncipes e ter constituído em cada um dos cidadãos um aspirante a opressor dos que ao mesmo tempo declarava seus iguais.” 
Agostinho da Silva


A palavra flexibilizar algures no tempo referia-se a algo com propriedades plásticas, que se moldava em várias direcções até ao ponto de ruptura. Dado que a massa neste caso específico é uma constante (perdoa-me Einstein!), ao aumentarmos a longitude, diminuímos necessariamente o diâmetro. Isto dito de uma forma um pouco mais desprezível é algo como, você passa a trabalhar mais tempo, com o mesmo dinheiro, ou então passa a trabalhar menos tempo ganhando muito menos. Há uma terceira hipótese metafísica, e que parece ganhar grande consistência na nossa massa empresarial: passa a trabalhar sem tempo, sem contrato, talvez com contractos de alguns meses, preferencialmente a recibos electrónicos (um gadget que bate aos pontos a Bimby!) e talvez com muita sorte daqui a uns 3 ou 6 meses possa engrossar as apetecíveis filas do IEFP. Em termos de estatística descritiva e recreativa, contabiliza-se menos um desempregado [para bom entendedor, há umas bisnagas de vaselina líquida com efeito semelhante á venda em algumas lojas gourmet]. Ainda a propósito da frase acima, vem-me à memória os ecos das últimas revoltas dos professores - um dos alvos a abater. Sou apologista da avaliação séria [nunca por motu proprio], não aquela encenação de bons e excelentes que mascaravam até há pouco, a avaliação dos docentes. Prova de acesso à carreira, tal como já existe noutras profissões, não vejo porque não, antes pelo contrário credibiliza e confere outro estatuto. Agora, os avanços e recuos desse senhor com ar blasé que se deixou instrumentalizar pela entourage da 5 de Outubro, apenas lhe conferem o direito a resignar ao cargo que ocupa há demasiado tempo. Ainda a propósito da luta dos professores, não me parece que o artigo 57.º da Constituição refira algo a propósito de limitar ou impedir a realização da prova por quem pretenda efectuá-la. O mesmo se aplica a quem pretende trabalhar em dias de greve.


"Ai temos o Estado, nosso pai, autoridade e segurança" 
Thomas Mann

E por agora é tudo ou antes, um pouco de nada. 

(photo by: Lewis Hine)