É com alguma acidez natural e ironia, que me despeço deste 2021 [tal como em 2020, o peixe que Ordemalfabétix me impingiu tinha a consistência e a frescura de uma alface de Chernobil]. Até podia ser sádico e relembrar alguns bons momentos do ano [que os houve; com a mesma frequência com que observamos os anéis de Saturno na abóboda celeste], mas não. Foquemo-nos nas últimas horas deste pretérito imperfeito do conjuntivo, pois não há muito predicados para recordar.
31/12/2021
2021 Ano Pandémico II
26/12/2021
Natal
Não recorras ao que já sabes do Natal,
mas coloca-te à espera
daquilo que de repente em teu coração
se pode revelar
Não reduzas o Natal ao enredo dos símbolos
tornando-o um fragmento trémulo sem lugar
no concreto da vida
Não repitas apenas as frases que te sentes obrigado a dizer
como se o Natal devesse preencher um vazio
em vez de o desocultar
Não confundas os embrulhos com o dom
nem a acumulação de coisas com a possibilidade da festa:
o que recebes de graça
só gratuitamente poderás partilhar
Cuida do exterior sabendo que ele é verdadeiro
quando movido por uma alegria que vem de dentro
Uma só coisa merece ser buscada e celebrada, uma só:
o despertar de uma Presença no fundo da alma
Por isso o Natal que é teu não te pertence
Só a outro o poderás pedir.
José Tolentino Mendonça
25/09/2021
...confortos de alma
..se há coisa que me entusiasma é acordar a um certo
dia e pensar que daqui a umas horas vou utilizar a caneta para fazer umas cruzes
bem bonitas nos quadradinhos sem exceder os limites legais da geometria. Um mísero
detalhe que encerra o quão importante passo a ser a partir desse momento, para o
equilíbrio do ecossistema político. Por um voto se ganha ou perde, e o gasto em
tinta até é supérfluo; comparativamente, o estrago que a escolha pode ter, poderá ter outras incidências geométricas. Por sinal, nesta campanha [tal como tinha sucedido
com as anteriores] o nível de discussão foi tão avassalador, tão rico que estou
muito inclinado a daqui a quatro anos, propor-me como putativo candidato à Junta
de freguesia de um ilhéu nas Desertas, ou quem sabe a algo mais ousado, presidente da
Câmara do Ilhéu das Cabras. Uma boa hipótese para um futuro salto para uma aventura mais internacional (sempre fica mais perto de Washigton!).
Não é por nada, mas seria um passo decisivo para a
minha afirmação como cidadão interventivo, pró-activo e defensor acérrimo da
causa pública. As vantagens seriam mais do que evidentes para todos nós. Por um
lado, seria uma forma de descentralizar forma objectivamente específica e
factual contraindo a tese que muito se fala mas pouco se concretiza.
Por outro, seria uma forma de rentabilizar de forma
segura e transparente o investimento que costuma aparecer de forma simpática no
orçamento europeu na sub-secção territórios insulares, mas que normalmente
serve para construir hotéis ou cais de acostagem para paquetes de luxo. Ora, quer
o Ilhéu das Cabras quer o Ilhéu Deserta Grande, apesar de constituírem excelentes
portos de águas profundas, apresentam, características interessantes para a
acostagem de embarcações de grande porte que não excedam o tamanho de um bote
de borracha.
Outra das promessas que penso constar no manifesto
eleitoral que está em reanálise, será a descarbonização de toda a economia
local, pela implementação de ninhos em material reciclável para toda a avifauna
marinha e a redução da emissão de gases de escape (os botes só poderão acostar
se movidos à força de braços ou vela).
Dado que sou uma pessoa de bem, é minha intenção tornar
o território livre de armas, em especial bazucas, espingardas ou pistolas de
forminantes. Fiquemo-nos pelas atoardas deselegantes vinda de onde vierem,
sobretudo dos meus futuros opositores políticos. No máximo serão toleradas fisgas
ou arremessos de lava solidificada que por lá não faltam.
Não contem comigo para autocolantes, canetas ou
chapéus e bandeirinhas em corsos circenses sob aplausos. Contem comigo para
obra feita, nem que sejam umas rotundas ali ou acolá.
Penso que este conjunto de medidas, será mais do que suficiente
para assegurar um futuro mais risonho para colocar qualquer uma destas parcelas
do território na senda do desenvolvimento sustentado.
Mas amanhã vou mesmo votar primeiro, depois logo se
vê.
20/09/2021
…sem título
Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou soterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado,
Revivo, existo, conheço;
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço:
Entrego-lhe o coração.
(Fernando Pessoa
19/09/2021
..bas fond
...passada quase uma semana desde o início da campanha eleitoral confesso que não tive tempo suficiente para aprofundar com a devida subjectividade as diferentes propostas eleitorais que me têm sido presenteadas. Ainda assim, ficou-me já gravado na retina a riqueza e originalidade de um dos temas mais interessantes da campanha [desconfio que se vai prolongar até à noite eleitoral]: a bazuca. O discurso bélico e buliçoso é o máximo denominador comum de quase todos os discursos, facto que demonstra o bas fond da nata política (reflexo da sociedade?). Aliás, se retirarmos do discurso a tríade mágica: o PPR, as promessas de dinheiro fresco para quem votar no partido que está no poder e os novos investimentos que vão ser realizados, mas que curiosamente já lá constavam em anteriores campanhas, ainda assim, ficamos com um conjunto apreciável de boas ideias e iniciativas louváveis [ver detalhe de algumas delas na imagem infra]. Em suma um manancial que se extingue até ao ponto de aridez absoluta.
Nota de auto-flagelação: votar foi em tempos, um exercício
agradável, sobretudo quando o discurso e os oradores tinham o dom da palavra e
um sentido nobre da causa pública [os resultados é que nem sempre seriam os
melhores, mas isso resolvia-se no plebiscito seguinte de forma mecânica]. Nos
dias de hoje, é dramático, quase angustiante ouvir e ler determinados
candidatos, que mais não são do que a materialização do vazio, ou de formas
abstractas do ridículo. Diria que a seita dos idiotas está a propagar-se forma
quase viral - abusando da metáfora. E para isso ainda não há profilaxia, nem
vacina.
26/05/2021
...a estrada não termina
Não tenho por hábito escrever homenagens ou tributos a alguém,
mas a Rosinha não era “alguém”. Hoje deixou-nos aquele sorriso encantador. Para
quem como eu que comungou pequenos momentos com ela, há uma vontade enorme de
relembrar sempre cada minuto, como se fossem horas. A última vez que partilhamos
a mesma mesa de conversas foi no jardim da sua casa no verão do ano passado.
Depois disso fomos trocando mensagens já com ela hospitalizada e, ultimamente
já em casa.
Tinha perfeita noção do seu real estado de saúde, desde o primeiro
diagnóstico. Movido pela força dela (única e inexplicável), inconscientemente acreditei num milagre; erro comum para quem sem a lucidez que se exige, sempre manifestou alguma relutância em entender a morte como uma transformação da própria vida
física, em algo mais profundo.
A Rosinha era um poço de vida. Provavelmente a pessoa com maior compaixão
pelo próximo que conheci até hoje. Uma mãe e esposa que semeou amor e carinho. De
entre os traços de carácter que a engrandeciam, a grandeza cívica e humana. Não
é preciso fechar os olhos para interiorizar a dimensão do legado que deixa. Era
como sempre, inteira nos afectos, corajosa da defesa das suas convicções,integra e
cativante. Sempre.
E para sempre, o vazio que agora nos acerca e a saudade que nos desafia será preenchido com a memória e aquele sorriso que nos abraçava a alma.
Marta a tua mãe vive em ti.
Um grande Abraço Filipe.
17/05/2021
...nenhum
um pais sem cultura nem sequer é lugar, é lugar nenhum onde a lei da ignorância impera e governa. A iliteracia é o triunfo brutal dos fracos, desses para quem a cultura é vista como um capricho de uma pequena franja de intelectuais líricos que vivem a vida como um ilídio wagneriano.
Uma civilização é tanto mais retrógrada, quanto mais se submete à fatalidade de o ser humano não ousar sonhar, ser criativo e crítico. Isto é o o que nos distingue dos sonâmbulos que advogam o paraíso futuro, silencioso, monótono e autómato.
O multiculturalismo, a
interculturalidade são territórios férteis para a produção artística, pois
absorvem o que de melhor cada povo tem para oferecer. Este patchwork de
pensamentos e conhecimento sempre acompanhou a renascimento do Homem. Quem opta
por formatos pré-estabelecidos e se submete à massificação cristaliza no território
do autoritarismo cultural, e vive o vazio intesticial. A cultura é o encontro entre-espaços, entre-tempos, o barro que nos molda, o fio condutor, a pauta que nos faz sonhar, a palavra que nos faz ser.
16/05/2021
...os invisíveis
…numa altura em que as baterias do discurso político direccionam-se ora para a retórica militar [bazuca] ora para a escatológica performance de alguns ministérios, aqui do alto desta torre de cristal, seguro da justeza da argumentação e a salvo de raides de haters, diria que o clima é mais de descendente do que propriamente de um ciclo de expansão.
Não é necessário percorrer algumas das
brilhantes performances dos senhores do capital – nobres honrados cavaleiros
feudais, reputados na arte do esquecimento e exímios mestres na arrogância - que
por estes dias glorificam o papel dos ilustres deputados da Nação, nas audições
parlamentares sobre a gestão do Novo Banco. É um aconchego para esta alma,
imaginar que os favores dos amigos – agora meros conhecidos ou nem isso,
serviram para criar uma teia de ilusões tão densa que nem na noite mais obscura,
seria possível a mais incauta borboleta da traça evitar ser surpreendida. É confortável
verificar a agora aquilo que muitos camaradas alertavam para os perigos do
capital, não eram um salto de pó de um disco riscado, mas antes a mais pálida
das verdades.
(foto do mestre Sebastião Salgado)
Fomos construindo um País assente em
bases tão sólidas e tão nobres, que agora servem como stand-up comedy
para donas de casa de final de tarde na televisão do parlamento. Mais, tão determinados
e voluntariosos, os nossos apóstolos da economia de mercado, ainda se deram ao
trabalho de criar paraísos e fundações com fins filantrópicos, para aliviar a voracidade
da Autoridade Fiscal, a bem da nobreza e uns e criando empregos para uma
imensidão de gente que a esta hora devia estar de joelhos agradecida por tamanha
demonstração de caridade.
Tenhamos fé neles e em todos aqueles que
se ajoelham a apanhar frutos e hortícolas a troco de um quarto compartilhado com
mais uma dúzia e pouco mais de 3 m2 de liberdade neste paraíso de
tendas de plástico. O consumidor no hipermercado agradece o desconto
proporcionado e o Estado assobia ao som de uma qualquer moda alentejana. O problema,
é que estes invisíveis [revisitando as personagens do escritor Ondjaki] há-os
por todo o lado. Mas como sempre, ninguém se apercebe ou realmente incomoda.
Desde que não vivam relativamente perto da sua zona de conforto.
Pergunto-me se não seria preferível enfiar qualquer loquaz vedeta do canal parlamento em contentores e dar alguma dignidade a quem fugiu da miséria e a da iniquidade?
01/02/2021
à escuta
“Ponho o
ouvido à escuta de encontro ao mundo:
ouço-me para dentro.”
E não tardam
as dispersas primaveras,
uma atrás da outra.
Passa no mundo a estranha
ventania.
(...)
Por trás da imobilidade, horas
verdes
caem de espaço a espaço
— gotas de água no fundo de um
subterrâneo.
E em volta um círculo de
montanhas atentas.
No alto da noite côncava e
branca,
uma camélia gelada. E metem as
árvores
para o interior
a tinta e os ramos.
Absorção
dolorosa, diamante polido,
vegetação
criptogâmica.
— O tempo.
E o céu. Basta-nos o nome para
lidar
com ele.
O céu.
Uma nódoa que se entranha
noutra nódoa.
— A água tem um som.
Mar inesgotável que desliza no
silêncio.
Ponho o ouvido à escuta de
encontro ao mundo:
ouço-me para dentro. Mal posso
dar no mundo um passo
sem tremer; sinto-me
balouçado num sonho imenso,
ando
nas pontas dos pés.
E estou só e a noite.
Há palavras que requerem uma
pausa e silêncio.
Herberto
Helder
31/01/2021
...assincronia
Perante uma situação emergência,
como é que vivemos actualmente (tal como sucedeu em Itália, mais tarde em
Inglaterra, ainda a decorrer nos Estados Unidos, e noutras paragens) há sempre dois
modelos de actuação, cada qual com as suas fragilidades e desafios: salvar o
maior número e salvar todos os que podem ser salvos. O segundo
modelo congrega o consenso moral, o primeiro é um desígnio alcançável, mas qualquer
um deles enferma de um pequeno problema funcional e estrutural: por mais planos
que se façam, nada consegue remediar a arbitrariedade da produção e
distribuição das vacinas. Não depende de nós.
Simplesmente, não existe sincronia
absoluta na cadeia de processamento e a garantia de fornecimento é baseada na
expectativa.
Por isso, é normal que casos como os que sucederam esta semana, e que não são um exclusivo nacional (atente-se ao que sucedeu por exemplo no Oregon na passada quinta-feira), vão ser inevitáveis. Toda e qualquer acção por parte das equipas que estão a administrar as vacinas vai sempre depender da tomada de decisão individual, organizacional e ética. Aquilo que se pode questionar (e bem!) é se, faz sentido fornecer uma primeira dose a todos os trabalhadores de uma simples pastelaria e questionar o facto de terem estado naquela hora específica no local certo. Outra questão que deve ser exarada (naquilo que, agora se intitula do foro “criminoso”) é se, não teria sido mais justo indagar outro local nas proximidades com pessoas que estejam dentro dos critérios da 1ª Fase. Certamente que haverá.
Convém notar que, não se pode
replicar o mesmo raciocínio à atitude de quem, estando em lugares de chefia
pública (ou privada) utiliza essa condição como argumento, para, de forma
gravosa, sobrepor-se ao racional que está definido. O enquadramento desses
actos, ultrapassa questões éticas ou morais, e cai directamente no âmbito do absurdo
premeditado. Isso sim, é matéria passível de ser julgada. E não é uma questão,
é um facto.
Para que o modelo funcione, não é
possível que todo e qualquer indivíduo mobilize esforços e sobreponha-se ao
próximo, de uma forma individualista e egocêntrica. Tudo tem de seguir o seu ritmo-
a sincronia absoluta mais do que uma impossibilidade, é uma utopia. Qualquer
tentativa reiterada de subverter as regras definidas constituem um clamoroso
perigo – a utopia transfigura-se em anarquia.