31/12/2021

2021 Ano Pandémico II

É com alguma acidez natural e ironia, que me despeço deste 2021 [tal como em 2020, o peixe que Ordemalfabétix me impingiu tinha a consistência e a frescura de uma alface de Chernobil]. Até podia ser sádico e relembrar alguns bons momentos do ano [que os houve; com a mesma frequência com que observamos os anéis de Saturno na abóboda celeste], mas não. Foquemo-nos nas últimas horas deste pretérito imperfeito do conjuntivo, pois não há muito predicados para recordar.

Sob todos os pontos de vista, o epitáfio do ano está deveras irritante pois, se no transacto fazia algum sentido ficar no recato da datcha para tentar escapar ao vírus, agora que cavalga impunemente todas as letras do alfabeto grego [e quando este terminar, sugiro desde já a colecção logogramas Han], pouco vale evitá-lo! Com zaragatoa ou escovilhão de casa de banho, ele virá na mesma - sem convite nem aplicação SNS24.


Assim, para me despedir convenientemente deste malfadado MMXXI [não esquecer de comprar uma peça de vestuário nova; uma entre outras superstições idiotas!], o réveillon que está a ser congeminado [gosto desta palavra; é gourmet como caviar de beluga com um flute de Bollinger, mas lato sensu, não passa de um prato de sobremesa com 12 passas e espumante da prateleira de cima da mercearia] vai ser um pouco mais alto, no château, de onde poderemos observar com toda amplitude cénica, a passagem de ano em Sydney, a Times Square Ball a descer e subir e com alguma sorte o fogo de artifício no Burj Khalifa.
No intervalo é preparar as colheres de pau as tampas dos tachos e rezar para que o day-after não ande a chá de cidreira enquanto vejo o maestro Daniel Barenboim a dirigir a Wiener Philharmoniker, no Neujahrskonzert.
Tudo isto por causa de uma noite absolutamente banal igual às restantes 364 do resto do ano mas com um pouco menos de barulho, em que estamos acordados, dormimos e no momento seguinte acordamos.
Sobre o tema resoluções, como já não há muitos bancos na corda bamba – e o que há por aí, é sobretudo empresas onde o Estado infiltrou agentes políticos disfarçados de grandes gestores – não perspectivo grandes considerações nem análises sumárias.
Apenas, peço para fazerem crochet sempre que puderem, ou limpar o cotão por detrás dos móveis, pois nunca se sabe!

Até já 2022

26/12/2021

Natal

 Não recorras ao que já sabes do Natal,

mas coloca-te à espera

daquilo que de repente em teu coração

se pode revelar

Não reduzas o Natal ao enredo dos símbolos

tornando-o um fragmento trémulo sem lugar

no concreto da vida

Não repitas apenas as frases que te sentes obrigado a dizer

como se o Natal devesse preencher um vazio

em vez de o desocultar

Não confundas os embrulhos com o dom

nem a acumulação de coisas com a possibilidade da festa:

o que recebes de graça

só gratuitamente poderás partilhar

Cuida do exterior sabendo que ele é verdadeiro

quando movido por uma alegria que vem de dentro

Uma só coisa merece ser buscada e celebrada, uma só:

o despertar de uma Presença no fundo da alma

Por isso o Natal que é teu não te pertence

Só a outro o poderás pedir. 


José Tolentino Mendonça

25/09/2021

...confortos de alma

 

..se há coisa que me entusiasma é acordar a um certo dia e pensar que daqui a umas horas vou utilizar a caneta para fazer umas cruzes bem bonitas nos quadradinhos sem exceder os limites legais da geometria. Um mísero detalhe que encerra o quão importante passo a ser a partir desse momento, para o equilíbrio do ecossistema político. Por um voto se ganha ou perde, e o gasto em tinta até é supérfluo; comparativamente, o estrago que a escolha pode ter, poderá ter outras incidências geométricas. Por sinal, nesta campanha [tal como tinha sucedido com as anteriores] o nível de discussão foi tão avassalador, tão rico que estou muito inclinado a daqui a quatro anos, propor-me como putativo candidato à Junta de freguesia de um ilhéu nas Desertas, ou quem sabe a algo mais ousado, presidente da Câmara do Ilhéu das Cabras. Uma boa hipótese para um futuro salto para uma aventura mais internacional (sempre fica mais perto de Washigton!).

Não é por nada, mas seria um passo decisivo para a minha afirmação como cidadão interventivo, pró-activo e defensor acérrimo da causa pública. As vantagens seriam mais do que evidentes para todos nós. Por um lado, seria uma forma de descentralizar forma objectivamente específica e factual contraindo a tese que muito se fala mas pouco se concretiza.

Por outro, seria uma forma de rentabilizar de forma segura e transparente o investimento que costuma aparecer de forma simpática no orçamento europeu na sub-secção territórios insulares, mas que normalmente serve para construir hotéis ou cais de acostagem para paquetes de luxo. Ora, quer o Ilhéu das Cabras quer o Ilhéu Deserta Grande, apesar de constituírem excelentes portos de águas profundas, apresentam, características interessantes para a acostagem de embarcações de grande porte que não excedam o tamanho de um bote de borracha.



Outra das promessas que penso constar no manifesto eleitoral que está em reanálise, será a descarbonização de toda a economia local, pela implementação de ninhos em material reciclável para toda a avifauna marinha e a redução da emissão de gases de escape (os botes só poderão acostar se movidos à força de braços ou vela).

Dado que sou uma pessoa de bem, é minha intenção tornar o território livre de armas, em especial bazucas, espingardas ou pistolas de forminantes. Fiquemo-nos pelas atoardas deselegantes vinda de onde vierem, sobretudo dos meus futuros opositores políticos. No máximo serão toleradas fisgas ou arremessos de lava solidificada que por lá não faltam.

Não contem comigo para autocolantes, canetas ou chapéus e bandeirinhas em corsos circenses sob aplausos. Contem comigo para obra feita, nem que sejam umas rotundas ali ou acolá.

Penso que este conjunto de medidas, será mais do que suficiente para assegurar um futuro mais risonho para colocar qualquer uma destas parcelas do território na senda do desenvolvimento sustentado.

Mas amanhã vou mesmo votar primeiro, depois logo se vê. 

20/09/2021

…sem título



 Em meus momentos escuros

Em que em mim não há ninguém,

E tudo é névoas e muros

Quanto a vida dá ou tem,


Se, um instante, erguendo a fronte

De onde em mim sou soterrado,

Vejo o longínquo horizonte

Cheio de sol posto ou nado,


Revivo, existo, conheço;

E, ainda que seja ilusão

O exterior em que me esqueço,

Nada mais quero nem peço:

Entrego-lhe o coração.


(Fernando Pessoa

19/09/2021

..bas fond

 ...passada quase uma semana desde o início da campanha eleitoral confesso que não tive tempo suficiente para aprofundar com a devida subjectividade as diferentes propostas eleitorais que me têm sido presenteadas. Ainda assim, ficou-me já gravado na retina a riqueza e originalidade de um dos temas mais interessantes da campanha [desconfio que se vai prolongar até à noite eleitoral]: a bazuca. O discurso bélico e buliçoso é o máximo denominador comum de quase todos os discursos, facto que demonstra o bas fond da nata política (reflexo da sociedade?). Aliás, se retirarmos do discurso a tríade mágica: o PPR, as promessas de dinheiro fresco para quem votar no partido que está no poder e os novos investimentos que vão ser realizados, mas que curiosamente já lá constavam em anteriores campanhas, ainda assim, ficamos com um conjunto apreciável de boas ideias e iniciativas louváveis [ver detalhe de algumas delas na imagem infra]. Em suma um manancial que se extingue até ao ponto de aridez absoluta.

Aliás a melhor forma de avaliar o quão sublime é o paradoxo deste exercício eleitoral, é tentar interpretar de forma quase clínica a objectividade de algumas coligações eleitorais que ora se digladiam até à morte na arena, para no concelho vizinho estarem unidas de facto até que a morte as separe contra um suposto inimigo comum, que por sinal será o vizinho amado já ali ao lado. O que me espanta é que há pouca gente a dar por isso e interrogo-me se não há aqui uma falha qualquer de percepção ou então um excesso de indiferença.

Nota de auto-flagelação: votar foi em tempos, um exercício agradável, sobretudo quando o discurso e os oradores tinham o dom da palavra e um sentido nobre da causa pública [os resultados é que nem sempre seriam os melhores, mas isso resolvia-se no plebiscito seguinte de forma mecânica]. Nos dias de hoje, é dramático, quase angustiante ouvir e ler determinados candidatos, que mais não são do que a materialização do vazio, ou de formas abstractas do ridículo. Diria que a seita dos idiotas está a propagar-se forma quase viral - abusando da metáfora. E para isso ainda não há profilaxia, nem vacina.


26/05/2021

...a estrada não termina

 

Não tenho por hábito escrever homenagens ou tributos a alguém, mas a Rosinha não era “alguém”. Hoje deixou-nos aquele sorriso encantador. Para quem como eu que comungou pequenos momentos com ela, há uma vontade enorme de relembrar sempre cada minuto, como se fossem horas. A última vez que partilhamos a mesma mesa de conversas foi no jardim da sua casa no verão do ano passado. Depois disso fomos trocando mensagens já com ela hospitalizada e, ultimamente já em casa.

Tinha perfeita noção do seu real estado de saúde, desde o primeiro diagnóstico. Movido pela força dela (única e inexplicável), inconscientemente acreditei num milagre; erro comum para quem sem a lucidez que se exige, sempre manifestou alguma relutância em entender a morte como uma transformação da própria vida física, em algo mais profundo.

A Rosinha era um poço de vida. Provavelmente a pessoa com maior compaixão pelo próximo que conheci até hoje. Uma mãe e esposa que semeou amor e carinho. De entre os traços de carácter que a engrandeciam, a grandeza cívica e humana. Não é preciso fechar os olhos para interiorizar a dimensão do legado que deixa. Era como sempre, inteira nos afectos, corajosa da defesa das suas convicções,integra e cativante. Sempre.



E para sempre, o vazio que agora nos acerca e a saudade que nos desafia será preenchido com a memória e aquele sorriso que nos abraçava a alma.


Marta a tua mãe vive em ti. 

Um grande Abraço Filipe.

 Até já Rosinha

17/05/2021

...nenhum

 um pais sem cultura nem sequer é lugar, é lugar nenhum onde a lei da ignorância impera e governa. A iliteracia é o triunfo brutal dos fracos, desses para quem a cultura é vista como um capricho de uma pequena franja de intelectuais líricos que vivem a vida como um ilídio wagneriano.



Uma civilização é tanto mais retrógrada, quanto mais se submete à fatalidade de o ser humano não ousar sonhar, ser criativo e crítico. Isto é o o que nos distingue dos sonâmbulos que advogam o paraíso futuro, silencioso, monótono e autómato.

O multiculturalismo, a interculturalidade são territórios férteis para a produção artística, pois absorvem o que de melhor cada povo tem para oferecer. Este patchwork de pensamentos e conhecimento sempre acompanhou a renascimento do Homem. Quem opta por formatos pré-estabelecidos e se submete à massificação cristaliza no território do autoritarismo cultural, e vive o vazio intesticial. A cultura é o encontro entre-espaços, entre-tempos, o barro que nos molda, o fio condutor, a pauta que nos faz sonhar, a palavra que nos faz ser. 

16/05/2021

...os invisíveis

 …numa altura em que as baterias do discurso político direccionam-se ora para a retórica militar [bazuca] ora para a escatológica performance de alguns ministérios, aqui do alto desta torre de cristal, seguro da justeza da argumentação e a salvo de raides de haters, diria que o clima é mais de descendente do que propriamente de um ciclo de expansão.

Não é necessário percorrer algumas das brilhantes performances dos senhores do capital – nobres honrados cavaleiros feudais, reputados na arte do esquecimento e exímios mestres na arrogância - que por estes dias glorificam o papel dos ilustres deputados da Nação, nas audições parlamentares sobre a gestão do Novo Banco. É um aconchego para esta alma, imaginar que os favores dos amigos – agora meros conhecidos ou nem isso, serviram para criar uma teia de ilusões tão densa que nem na noite mais obscura, seria possível a mais incauta borboleta da traça evitar ser surpreendida. É confortável verificar a agora aquilo que muitos camaradas alertavam para os perigos do capital, não eram um salto de pó de um disco riscado, mas antes a mais pálida das verdades.

                                                                                             (foto do mestre Sebastião Salgado) 

Fomos construindo um País assente em bases tão sólidas e tão nobres, que agora servem como stand-up comedy para donas de casa de final de tarde na televisão do parlamento. Mais, tão determinados e voluntariosos, os nossos apóstolos da economia de mercado, ainda se deram ao trabalho de criar paraísos e fundações com fins filantrópicos, para aliviar a voracidade da Autoridade Fiscal, a bem da nobreza e uns e criando empregos para uma imensidão de gente que a esta hora devia estar de joelhos agradecida por tamanha demonstração de caridade.

Tenhamos fé neles e em todos aqueles que se ajoelham a apanhar frutos e hortícolas a troco de um quarto compartilhado com mais uma dúzia e pouco mais de 3 m2 de liberdade neste paraíso de tendas de plástico. O consumidor no hipermercado agradece o desconto proporcionado e o Estado assobia ao som de uma qualquer moda alentejana. O problema, é que estes invisíveis [revisitando as personagens do escritor Ondjaki] há-os por todo o lado. Mas como sempre, ninguém se apercebe ou realmente incomoda. Desde que não vivam relativamente perto da sua zona de conforto.

Pergunto-me se não seria preferível enfiar qualquer loquaz vedeta do canal parlamento em contentores e dar alguma dignidade a quem fugiu da miséria e a da iniquidade?

01/02/2021

à escuta

 

“Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo:

ouço-me para dentro.”

E não tardam

as dispersas primaveras,

uma atrás da outra.

Passa no mundo a estranha ventania. 

(...)

Por trás da imobilidade, horas verdes

caem de espaço a espaço

— gotas de água no fundo de um subterrâneo.

E em volta um círculo de montanhas atentas.

No alto da noite côncava e branca,

uma camélia gelada. E metem as árvores

para o interior

a tinta e os ramos.

Absorção

dolorosa, diamante polido, vegetação

criptogâmica.

— O tempo.

E o céu. Basta-nos o nome para lidar

com ele.

O céu.

Uma nódoa que se entranha

noutra nódoa.

— A água tem um som.

Mar inesgotável que desliza no silêncio.

Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo:

ouço-me para dentro. Mal posso

dar no mundo um passo

sem tremer; sinto-me

balouçado num sonho imenso, ando

nas pontas dos pés.

E estou só e a noite.

Há palavras que requerem uma pausa e silêncio.

 

Herberto Helder



31/01/2021

...assincronia

 

Perante uma situação emergência, como é que vivemos actualmente (tal como sucedeu em Itália, mais tarde em Inglaterra, ainda a decorrer nos Estados Unidos, e noutras paragens) há sempre dois modelos de actuação, cada qual com as suas fragilidades e desafios: salvar o maior número e salvar todos os que podem ser salvos. O segundo modelo congrega o consenso moral, o primeiro é um desígnio alcançável, mas qualquer um deles enferma de um pequeno problema funcional e estrutural: por mais planos que se façam, nada consegue remediar a arbitrariedade da produção e distribuição das vacinas. Não depende de nós.

Simplesmente, não existe sincronia absoluta na cadeia de processamento e a garantia de fornecimento é baseada na expectativa.

Por isso, é normal que casos como os que sucederam esta semana, e que não são um exclusivo nacional (atente-se ao que sucedeu por exemplo no Oregon na passada quinta-feira), vão ser inevitáveis. Toda e qualquer acção por parte das equipas que estão a administrar as vacinas vai sempre depender da tomada de decisão individual, organizacional e ética. Aquilo que se pode questionar (e bem!) é se, faz sentido fornecer uma primeira dose a todos os trabalhadores de uma simples pastelaria e questionar o facto de terem estado naquela hora específica no local certo. Outra questão que deve ser exarada (naquilo que, agora se intitula do foro “criminoso”) é se, não teria sido mais justo indagar outro local nas proximidades com pessoas que estejam dentro dos critérios da 1ª Fase. Certamente que haverá.

Convém notar que, não se pode replicar o mesmo raciocínio à atitude de quem, estando em lugares de chefia pública (ou privada) utiliza essa condição como argumento, para, de forma gravosa, sobrepor-se ao racional que está definido. O enquadramento desses actos, ultrapassa questões éticas ou morais, e cai directamente no âmbito do absurdo premeditado. Isso sim, é matéria passível de ser julgada. E não é uma questão, é um facto.

Para que o modelo funcione, não é possível que todo e qualquer indivíduo mobilize esforços e sobreponha-se ao próximo, de uma forma individualista e egocêntrica. Tudo tem de seguir o seu ritmo- a sincronia absoluta mais do que uma impossibilidade, é uma utopia. Qualquer tentativa reiterada de subverter as regras definidas constituem um clamoroso perigo – a utopia transfigura-se em anarquia.