26/05/2021

...a estrada não termina

 

Não tenho por hábito escrever homenagens ou tributos a alguém, mas a Rosinha não era “alguém”. Hoje deixou-nos aquele sorriso encantador. Para quem como eu que comungou pequenos momentos com ela, há uma vontade enorme de relembrar sempre cada minuto, como se fossem horas. A última vez que partilhamos a mesma mesa de conversas foi no jardim da sua casa no verão do ano passado. Depois disso fomos trocando mensagens já com ela hospitalizada e, ultimamente já em casa.

Tinha perfeita noção do seu real estado de saúde, desde o primeiro diagnóstico. Movido pela força dela (única e inexplicável), inconscientemente acreditei num milagre; erro comum para quem sem a lucidez que se exige, sempre manifestou alguma relutância em entender a morte como uma transformação da própria vida física, em algo mais profundo.

A Rosinha era um poço de vida. Provavelmente a pessoa com maior compaixão pelo próximo que conheci até hoje. Uma mãe e esposa que semeou amor e carinho. De entre os traços de carácter que a engrandeciam, a grandeza cívica e humana. Não é preciso fechar os olhos para interiorizar a dimensão do legado que deixa. Era como sempre, inteira nos afectos, corajosa da defesa das suas convicções,integra e cativante. Sempre.



E para sempre, o vazio que agora nos acerca e a saudade que nos desafia será preenchido com a memória e aquele sorriso que nos abraçava a alma.


Marta a tua mãe vive em ti. 

Um grande Abraço Filipe.

 Até já Rosinha

17/05/2021

...nenhum

 um pais sem cultura nem sequer é lugar, é lugar nenhum onde a lei da ignorância impera e governa. A iliteracia é o triunfo brutal dos fracos, desses para quem a cultura é vista como um capricho de uma pequena franja de intelectuais líricos que vivem a vida como um ilídio wagneriano.



Uma civilização é tanto mais retrógrada, quanto mais se submete à fatalidade de o ser humano não ousar sonhar, ser criativo e crítico. Isto é o o que nos distingue dos sonâmbulos que advogam o paraíso futuro, silencioso, monótono e autómato.

O multiculturalismo, a interculturalidade são territórios férteis para a produção artística, pois absorvem o que de melhor cada povo tem para oferecer. Este patchwork de pensamentos e conhecimento sempre acompanhou a renascimento do Homem. Quem opta por formatos pré-estabelecidos e se submete à massificação cristaliza no território do autoritarismo cultural, e vive o vazio intesticial. A cultura é o encontro entre-espaços, entre-tempos, o barro que nos molda, o fio condutor, a pauta que nos faz sonhar, a palavra que nos faz ser. 

16/05/2021

...os invisíveis

 …numa altura em que as baterias do discurso político direccionam-se ora para a retórica militar [bazuca] ora para a escatológica performance de alguns ministérios, aqui do alto desta torre de cristal, seguro da justeza da argumentação e a salvo de raides de haters, diria que o clima é mais de descendente do que propriamente de um ciclo de expansão.

Não é necessário percorrer algumas das brilhantes performances dos senhores do capital – nobres honrados cavaleiros feudais, reputados na arte do esquecimento e exímios mestres na arrogância - que por estes dias glorificam o papel dos ilustres deputados da Nação, nas audições parlamentares sobre a gestão do Novo Banco. É um aconchego para esta alma, imaginar que os favores dos amigos – agora meros conhecidos ou nem isso, serviram para criar uma teia de ilusões tão densa que nem na noite mais obscura, seria possível a mais incauta borboleta da traça evitar ser surpreendida. É confortável verificar a agora aquilo que muitos camaradas alertavam para os perigos do capital, não eram um salto de pó de um disco riscado, mas antes a mais pálida das verdades.

                                                                                             (foto do mestre Sebastião Salgado) 

Fomos construindo um País assente em bases tão sólidas e tão nobres, que agora servem como stand-up comedy para donas de casa de final de tarde na televisão do parlamento. Mais, tão determinados e voluntariosos, os nossos apóstolos da economia de mercado, ainda se deram ao trabalho de criar paraísos e fundações com fins filantrópicos, para aliviar a voracidade da Autoridade Fiscal, a bem da nobreza e uns e criando empregos para uma imensidão de gente que a esta hora devia estar de joelhos agradecida por tamanha demonstração de caridade.

Tenhamos fé neles e em todos aqueles que se ajoelham a apanhar frutos e hortícolas a troco de um quarto compartilhado com mais uma dúzia e pouco mais de 3 m2 de liberdade neste paraíso de tendas de plástico. O consumidor no hipermercado agradece o desconto proporcionado e o Estado assobia ao som de uma qualquer moda alentejana. O problema, é que estes invisíveis [revisitando as personagens do escritor Ondjaki] há-os por todo o lado. Mas como sempre, ninguém se apercebe ou realmente incomoda. Desde que não vivam relativamente perto da sua zona de conforto.

Pergunto-me se não seria preferível enfiar qualquer loquaz vedeta do canal parlamento em contentores e dar alguma dignidade a quem fugiu da miséria e a da iniquidade?