Parabéns D
A menina não palavreava.
Nenhuma vogal lhe saía, os seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam
dois nem quatro. Era uma língua só dela, um dialecto pessoal e intransmissível?
Por muito que se aplicassem, os pais não conseguiam a percepção da menina.
Quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento. Quando construía o
raciocínio perdia o idioma. Não é que fosse muda. Falava numa língua que nem há
nesta actual humanidade. Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua
voz era bela de encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na
entoação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse.
O seu pai muito lhe
dedicava afeição e aflição. Uma noite apertou-lhe as mãos e implorou,
certo que falava sozinho:
— “Fala comigo, filha!”
Os olhos dele deslizaram.
A menina beijou a lágrima. Gostos daquela
água salgada e disse:
— “Mar”…
O pai espantou-se de boca
e orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os ombros da filha. “Vês, tu falas,
ela fala, ela fala!” Gritava para que se ouvisse. “Disse mar, ela disse mar”,
repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e se debruçaram sobre
ela. Mas mais nenhum som entendível se anunciou.
O pai não se conformou.
Pensou e repensou e elaborou um plano. Levou a filha para onde havia mar e mar
depois do mar. Se havia sido a única palavra que ela articulara em toda a sua
vida seria, então, no mar que se descortinaria a razão da inabilidade.
A menina chegou àquela
azul e o seu peito se definhou. Sentou-se na areia, joelhos interferindo na
paisagem. E as lágrimas interferindo nos joelhos. O mundo que ela pretendera
infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou simulando a pedra, sem som nem tom. O
pai pedia que ela voltasse, era preciso regressarem, o mar subia em ameaça.
— “Vem, filha!”
Mas a miúda estava tão
imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que nem sobe nem desce:
simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no olho da águia. E a retina
da ave se converte no mais vasto céu. O pai se admirava, feito tonto: por que
razão minha filha me faz recordar a águia?
— “Vamos filha! senão as
ondas vão-nos engolir”.
O pai rodopiava em seu
redor, se culpando do estado da menina. Dançou, cantou, pulou. Tudo para a
distrair. Depois, decidiu as vias do facto: meteu mãos nas axilas dela e
puxou-a. Tamanho peso tão jamais se viu. A miúda ganhara raiz, afloração de
rocha?
Cansado, sentou-se ao
lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe fica calado? O mar enchia a noite de
silêncios, as ondas já pareciam enrolar o peito assustado do homem. Foi quando
lhe ocorreu: a sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe
inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina
que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e
remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos
para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O
planeta era leve como um baloa.
Quando ele puxou para
arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua estilhaçou-se em
mil estrelinhas. O mar encrespou-se, o barco afundou, engolido num abismo. A
praia cobriu-se de prata, flocos de luar cobriam o areal. A menina pôs-se a
andar ao contrário de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os
pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
— “Pai!”
Então, abriu-se uma fenda
funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz
derramava-se sangue. A água sangrava? O sangue aguava? E foi assim. Essa foi
uma vez.
Chegado a este ponto, o
pai perdeu voz e calou-se. A história tinha perdido o fio e a meada dentro da
sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os seus pés, e as pernas da sua
filha? E ele, em desespero:
— “Agora, é que nunca”.
A menina, nesse instante,
ergueu-se e avançou ondas dentro. O pai seguiu-a, temeroso. Viu a filha apontar
o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O
pai espantou-se com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história
que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria
naquele abismo que eles ambos escoariam?
— “Filha, vem para
trás. Filha, por favor”…
Ao invés de recuar a
menina entrou mais no mar. Depois, parou e passou a mão pela água. A ferida
líquida fechou-se, instantânea. E o mar refez-se. A menina voltou atrás, pegou
na mão do pai e conduziu-o de volta a casa. No cimo, a lua recompunha-se.
— “Viste, pai? Eu acabei a tua história!”
E os dois, iluminados, extinguiram-se
no quarto, de onde nunca haviam saído.
adaptado de um conto de
Mia Couto