…talvez a forma menos cáustica de celebrar o
epílogo deste ano seja mesmo fazer uma introspecção demorada sobre tudo o que
aconteceu: as poucas boas, mas sobretudo o furioso galope do egoísmo e falta de
educação que atingiu como nunca os píncaros.
(sugestão de música: https://youtu.be/R9rF87XYmwQ)
Há pouco menos de um ano, enquanto almoçava rebatia
argumentos sobre as virtudes da organização disciplinada e férrea dos chineses
que, quais formigas no emaranhado caótico de um formigueiro, montavam em contra-relógio
um hospital para fazer face à ameaça de uma doença desconhecida. Um dos
argumentos à prova de bala foi que, a breve trecho, o hospital poderia colapsar
dada a reconhecida falta de qualidade (de quase tudo) made in China. Quiçá
uma forma proverbial de xenofobia comercial, mas que, para quem passou a vida a
brincar com carrinhos made in Taiwan, qualquer produto chinês é de facto
sofrível.
Enganei-me redondamente. Quem colapsou foi o mundo
que conhecíamos.
É intrigante. Bastou uma doença invisível, mortal para uns, uma maçada indolor para outros, para arruinar a teia intrincada de relações emocionais e paulatinamente destruir toda uma cadeia de sentimentos que mais não eram que uma singular aparência. Como se a lua fosse a penumbra e o sol uma sombra.
Algures já em plena pandemia escrevi que não havia que apontar esta ou aquela profissão, e que as palmas à janela e os afagos públicos depressa seriam esquecidos ou vulgarizados. Escrevi então que, no final seremos todos heróis. E a realidade confirma-o em todas as latitudes.
Amanhã, este longo Inverno emocional termina, mas não será a Primavera de um novo dia. Ainda há um eclipse duradouro até que possamos de novo tentar (re)viver num novo paradigma em que, os alicerces de tudo quanto considerávamos adquirido, deixou de ser. Como se o verbo fosse agora uma eterna dúvida.
Tenho sérias dificuldade em olhar da mesma forma para muitos rostos
cuja leitura dos últimos meses foi uma verdadeira decepção. Não sei se consigo
ter a mesma lhaneza de tracto para com quem, este sobressalto (chamemos-lhe
assim) foi um exercício dolente, mas muito revelador. Mas por outro sinto uma
certa nostalgia do tempo em que todos, eramos virtuosamente naïfs.
Talvez siga uma máxima existencial, e opte pelo silêncio. A mais pura forma de amor, e talvez um dia o olhar de quem se desligou sinta suficientemente amaciado. Não é por orgulho ou vingança mesquinha, mas porque há todo um mundo para lá de quem nos fecha portas. Para lá da penumbra e da sombra, encontro a profusão de luz. Por cada teia que a tempestade eliminou há uma nova arquitectura, um novo horizonte de planos que irrompem.
Um admirável
mundo novo, mas a mesma vida.