03/05/2020

...(a)norma



Parecia um ano completamente banal, pelo menos era essa a ameaça. Recordo-me vagamente que uma das resoluções era mesmo não planear nada [premonitório]. Nos primeiros dias de Dezembro as notícias que vinham da China começavam a levantar a ponta do véu daquilo que seria algo completamente disruptivo e devastador.

Primeiro a perspectiva de quem está longe e observa com natural espanto todos aqueles autómatos a construir um hospital de raiz em meia dúzia de dias, como se disso depende-se a sobrevivência da espécie ou tal significasse o último sopro de vida.

«E se este mundo for o inferno de outro planeta?»Aldous Huxley

Um pouco de forma jocosa, fazia-se o paralelo entre o investimento e obras públicas que por cá são uma eternidade e uma imensa fonte de corrupção, comparativamente com a celeridade e eficácia de um sistema comunista totalitário, desprovido de Tribunal de Contas, Código dos Contractos Públicos (CCP) e toda a carga “burocrática” e teias de relações que seria necessário ultrapassar para tal ser sequer imaginável. Já nem falo dos almoços.

Mas não. Estávamos todos enganados. Afinal era apenas por prenúncio de uma distopia que se transfigurou em realidade muito rapidamente.

Graças aos malefícios da globalização, dos  acanhados lugares dos voos charter e da dinâmica do turismo e da atractividade que o Velho Mundo Continente sempre teve por desgraças alheias [para mais informações consultar qualquer manual epidémico] aquela cidade que ficará pra sempre na nossa memória - Wuhan – era uma espécie de Hiroshima aqui mesmo lado.

As nossas vidas não são as mesmas. Somos personagens de uma ficção sem um guião.

«Que vida! A autêntica vida está ausente. Não estamos no mundo.»Rimbaud

As ruas são agora mares de silêncio. Onde se ouvia  adoce melodia da boémia, o crepitar da vida social, os afectos, os desalentos, o choro do desassossego, o murmurar da comunidade, agora é um mar de gente que se afasta aproximando, que lança um olhar desconfiado e um temor que transparece um medo heróico.

«Mesmo através do painel da janela fechada, o mundo parecia frio.»George Orwell

Enquanto caminho pelo jardim na esperança de ouvir por fim o ruído da Primavera que vingou o Inverno mas sem se anunciar ou ser comemorada, apercebo-me da geometria que todos os zombies [eu incluído] desenhamos no espaço – longas elipses que não se intersectam no tempo. O nosso mundo já não é plano, não há rectas, nem o calor das interseções, nem muito menos vidas paralelas. Somo corpos que giram em redor de um medo que nos atrai e nos repele. Não há o próximo, apenas a dor da distância.



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