27/03/2023

..ensaio sobre a estupidez humana (1/2 parte)

Torquemada tinha o velho hábito de resolver os problemas com uma boa fogueira. Diziam que purificava a lama e libertava todos os pecados , mas nos tempos que correm, primeiro tapam-se estátuas do Séc. XVI porque mostram pilinhas e censura-se o Noddy porque os maus são morenos. Como se isso não bastasse o afã moralista desta nova vaga da cultura iliberal esconder os livros da Enid Blyton, ainda chegam ao ponto de alterar os textos da Agatha pois o sr. Hercule Poirot e a Miss Marple eram definitivamente uns racistas da pior cepa!! Provavelmente os próximos alvos serão o senhores Marx e Engels, os pensamento desviantes do sr. Sigmund Freud e quase de certeza o horror literário do nosso libertino Bocage. O que dizer da infame escrita do Eça de Queirós? Desta nem o Gil Vicente ou o Camões escapam .

Há que preservar a integridade dos leitores mais sensíveis e formatar futuras gerações de imbecis por animais acéfalos.

Normalize-se o gosto! Acendam as fogueiras perante o dealbar exultante da estupidez humana!


20/03/2023

...nice things




 "Muda-se pouco, mas a vida muda por nós." 

Eduardo Lourenço

Tal como escrever Cervantes na obra-prima Dom Quixote a liberdade é um dos dons mais precioso do Homem. A liberdade não pode ser guardada num cofre, nem escondia sob areia da praia ou afundada mais profundo mar. 

A liberdade é uma escolha. Eu fiz a minha: desobedecer à lógica da predeterminação. Deixar de viver numa espécie de círculo vicioso, sem princípio ou fim, num miasma quase cristalizado. Continuar nesse ciclo, sem ter qualquer tipo de alegria nem viver gera, numa primeira análise, incerteza, depois angústia e por fim o apagamento do ser. A vida deixava de ter uma finalidade, pouco coerente; quase ilógica.

Ninguém de estar onde já não existe.

Não existem razões lógicas para que a vida  seja um problema constante. A vida não é um problema para ser resolvido, pelo contrário, deve ser vivida, com alegria, com curiosidade.
É justamente neste processo que acontece a mudança. O que cada um escolhe diz respeito a si mesmo - a liberdade, mudança. Chamem-lhe o que quiserem!

Existir passa a significar ter a liberdade de escolha. Sem dramas, com muita abertura de espírito; sempre em busca de algo novo, surpreendente. De momentos felizes, mas sobretudo de coisas boas.


11/02/2023

…regresso ao passado



Brinca enquanto souberes!

Tudo o que é bom e belo

Se desaprende…

A vida compra e vende

A perdição.

Alheado e feliz,

Brinca no mundo da imaginação,

Que nenhum outro mundo contradiz!


Brinca instintivamente

Como um bicho!

Fura os olhos do tempo,

E à volta do seu pasmo alvar

De cabra-cega tonta,

A saltar e a correr,

Desafronta

O adulto que hás-de ser!

Miguel Torga

11/01/2023

…escada


 Na curva desta escada nos amamos,

nesta curva barroca nos perdemos.
O caprichoso esquema
unia formas vivas, entre ramas.

Lembras-te carne? Um arrepio telepático
vibrou nos bens municipais, e dando volta
ao melhor de nós mesmos,
deixou-nos sós, a esmo,
espetacularmente sós e desarmados,
que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

E mortos, e proscritos
de toda comunhão no século (esta espira
é testemunha, e conta), que restava
das línguas infinitas
que falávamos ou surdas se lambiam
no céu da boca sempre azul e oco?

Que restava de nós,
neste jardim ou nos arquivos, que restava
de nós, mas que restava, que restava?
Ai, nada mais restara,
que tudo mais, na alva,
se perdia, e contagiando o canto aos passarinhos,
vinha até nós, podrido e trêmulo, anunciando
que amor fizera um novo testamento,
e suas prendas jaziam sem herdeiros
num pátio branco e áureo de laranjas.

Aqui se esgota o orvalho,
e de lembrar não há lembrança. Entrelaçados,
insistíamos em ser; mas nosso espectro,
submarino, à flor do tempo ia apontando,
e já noturnos, rotos, desossados,
nosso abraço doía
para além da matéria esparsa em números.

Asa que ofereceste o pouso raro
e dançarino e rotativo, cálculo,
rosa grimpante e fina
que à terra nos prendias e furtavas,
enquanto a reta insigne
da torre ia lavrando
no campo desfolhado outras quimeras:
sem ti não somos mais o que antes éramos.

E se este lugar de exílio hoje passeia
faminta imaginação atada aos corvos
de sua própria ceva,
escada, ó assunção,
ao céu alças em vão o alvo pescoço,
que outros peitos em ti se beijariam
sem sombra, e fugitivos,
mas nosso beijo e baba se incorporam
de há muito ao teu cimento, num lamento.

Carlos Drummond de Andrade 

31/12/2022

...365

 ...em boa verdade já estamos em 2023, pois neste pequeno ponto azul na vastidão do cosmos, metade dos desejos, metades dos sorrisos e alguns sentimentos de tristeza já são iluminados pelo sol. O mesmo em redor do qual que iniciámos mais uma rotação elíptica, No fundo, é apenas a espuma a do tempo que nos ilude, no meio deste percurso (quase penoso) pela magnetosfera.

Seria preciso uma bola de cristal para adivinhar como serão as próximas 365 jogadas, mas há algo que é bastante concreto e quase certo. Só há três formas de terminar o jogo: ou ganha um dos lados do tabuleiro, ou simplesmente chegam a uma acordo satisfatório para ambas as partes e vão a banhos na praia mais próxima.
O meu desejo para 2023 é... continuar a sentir o tempo passar.
Sinal que ainda estou por cá!
br

b

...terra nullius


Após dois anos em que nos refugiamos num mundo quase asséptico, em que quebramos o pacto solene de confraternizarmos até à exaustão, juntemos uma constatação importante: se a pandemia nos tornou reféns das redes sociais, da saudável distância (muitas vezes autoimposta outras imposta), a guerra que agora nos bate à porta, introduz novos condimentos: controlo, vigilância, a eliminação de opiniões contrárias à linha oficial, e mais e mais propaganda e contrapropaganda.

Se durante a pandemia, fechamos salas de espectáculos, silenciamos a arte e a cultura, e mais uma vez combatemos de forma insana quem pensava de forma diferente, agora com ou sem aforismos, nem metáforas fáceis, entramos na dimensão do inenarrável.

Quando do outro lado da “cortina de ferro” (desenterrei este tesourinho do pós-guerra), assistimos à diabolização do Ocidente (comparativamente à aura renascentista da cultura eslava) e, em simultâneo no outro extremo - no Império do Meio (ao lado daquela península onde um louco brinca com misseis balísticos) -  ouvimos o troar da união dos povos progressistas contra o maldito imperialismo ocidental, entramos gradualmente numa retórica que inevitavelmente conduzirá a ao recrudescer da desumanidade e ao colapso da humanidade como a imaginamos durante estas últimas décadas. Sim. Durante as últimas décadas vivemos uma fantasia de enamorados.

E como se tudo não bastasse, para além da fome, da guerra, do desespero de milhões que tentam atravessar fronteiras, ainda assistimos à barbárie perpetuada por fundamentalistas religiosos que interpretam os ditames da religião que confessam, como símios a interpretar a teoria da evolução das espécies do Darwin. Para completar o ramalhete de preciosidades, a proibição das mulheres de frequentar o ensino no Afeganistão, entra num plano que não é possível postular com algum tipo de coerência filosófica.

Assim de súbito, quase apetece rumar em direcção a uma qualquer terra nullius e aí respirar algum tipo de paz interior, longe, muito longe, para lá do horizonte dominado pelos antagonismos entre os povos, dos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas, etc.

Não há forma de entender este admirável mundo novo, nem lendo até à última consoante, até ao último sopro de força.