18/03/2016

...l'amour

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra 
e seu arbusto de sangue. Com ela 
encantarei a noite. 
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. 
Seus ombros beijarei, a pedra pequena 
do sorriso de um momento. 
Mulher quase incriada, mas com a gravidade 
de dois seios, com o peso lúbrico e triste 
da boca. Seus ombros beijarei. 

 (foto: Jackson Carvalho)

Cantar? Longamente cantar. 
Uma mulher com quem beber e morrer. 
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave 
o atravessar trespassada por um grito marítimo 
e o pão for invadido pelas ondas - 
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes. 
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento 
de alegria e de impudor. 
Seu corpo arderá para mim 
sobre um lençol mordido por flores com água. 

Em cada mulher existe uma morte silenciosa. 
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos, 
os bordões da melodia, 
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue, 
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. 
- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob 
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito, 
mulher de pés no branco, transportadora 
da morte e da alegria. 



(foto: Luis Mendonça)
Dai-me uma mulher tão nova como a resina 
e o cheiro da terra. 
Com uma flecha em meu flanco, cantarei. 
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue, 
cantarei seu sorriso ardendo, 
suas mamas de pura substância, 
a curva quente dos cabelos. 
Beberei sua boca, para depois cantar a morte 
e a alegria da morte. 

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro 
pescoço de planta, 
onde uma chama comece a florir o espírito. 
À tona da sua face se moverão as águas, 
dentro da sua face estará a pedra da noite. 
- Então cantarei a exaltante alegria da morte. 

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela 
despenhada de sua órbita viva. 
- Porém, tu sempre me incendeias. 
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite 
imagem pungente 
com seu deus esmagado e ascendido. 
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. 
Entontece meu hálito com a sombra, 
tua boca penetra a minha voz como a espada 
se perde no arco. 
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua 
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo 
se desfibra - invento para ti a música, a loucura 
e o mar. 

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso, 
a inspiração. 
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa. 
Vou para ti com a beleza oculta, 
o corpo iluminado pelas luzes longas. 
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos 
transfiguram-se, tuas mãos descobrem 
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça 
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou 
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo - 
eu sou a beleza. 
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem 
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada 
beleza. 

(foto: J. Giesta)

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti 
que me vem o fogo. 
Não há gesto ou verdade onde não dormissem 
tua noite e loucura, não há vindima ou água 
em que não estivesses pousando o silêncio criador. 
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos 
originais. 
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra 
a carne transcendente. E em ti 
principiam o mar e o mundo. 

Minha memória perde em sua espuma 
o sinal e a vinha. 
Plantas, bichos, águas cresceram como religião 
sobre a vida - e eu nisso demorei 
meu frágil instante. Porém 
teu silêncio de fogo e leite repõe a força 
maternal, e tudo circula entre teu sopro 
e teu amor. As coisas nascem de ti 
como as luas nascem dos campos fecundos, 
os instantes começam da tua oferenda 
como as guitarras tiram seu início da música nocturna. 


Mais inocente que as árvores, mais vasta 
que a pedra e a morte, 
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto, 
tinge a aurora pobre, 
insiste de violência a imobilidade aquática. 
E os astros quebram-se em luz 
sobre as casas, a cidade arrebata-se, 
os bichos erguem seus olhos dementes, 
arde a madeira - para que tudo cante 
pelo teu poder fechado. 
Com minha face cheia de teu espanto e beleza, 
eu sei quanto és o íntimo pudor 
e a água inicial de outros sentidos. 

Começa o tempo onde a mulher começa, 
é sua carne que do minuto obscuro e morto 
se devolve à luz. 
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras 
com uma imagem. 
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito 
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade 
uma ideia de pedra e de brancura. 
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves, 
que te alimentas de desejos puros. 
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, 
a sombra canta baixo. 

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua, 
onde a beleza que transportas como um peso árduo 
se quebra em glória junto ao meu flanco 
martirizado e vivo. 
- Para consagração da noite erguerei um violino, 
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada 
darei minha voz confundida com a tua. 
Oh teoria de instintos, dom de inocência, 
taça para beber junto à perturbada intimidade 
em que me acolhes. 



(foto: Rui Silva)

Começa o tempo na insuportável ternura 
com que te adivinho, o tempo onde 
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde 
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida 
ingénua e cara, o que pressente o coração 
engasta seu contorno de lume ao longe. 
Bom será o tempo, bom será o espírito, 
boa será nossa carne presa e morosa. 
- Começa o tempo onde se une a vida 
à nossa vida breve. 

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna 
salina, imagem fechada em sua força e pungência. 
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado 
em torno das violas, a morte que não beijo, 
a erva incendiada que se derrama na íntima noite 
- o que se perde de ti, minha voz o renova 
num estilo de prata viva. 

Quando o fruto empolga um instante a eternidade 
inteira, eu estou no fruto como sol 
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada 
matriz de sumo e vivo gosto. 
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices 
das nuvens florescem, a resina tinge 
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã. 
E estás em mim como a flor na ideia 
e o livro no espaço triste. 

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento 
a cevada pura, de ti viriam cheias 
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses 
em minha espuma, 
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? 
- No entanto és tu que te moverás na matéria 
da minha boca, e serás uma árvore 
dormindo e acordando onde existe o meu sangue. 

Beijar teus olhos será morrer pela esperança. 
Ver no aro de fogo de uma entrega 
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus 
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante 
do meu perpétuo instante. 
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face 
se encha de um minuto sobrenatural, 
devo murmurar cada coisa do mundo 
até que sejas o incêndio da minha voz. 

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso 
jovem da carne aspiram longamente 
a nossa vida. As sombras que rodeiam 
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto 
seu bárbaro fulgor, o rosto divino 
impresso no lodo, a casa morta, a montanha 
inspirada, o mar, os centauros 
do crepúsculo 
- aspiram longamente a nossa vida. 

Por isso é que estamos morrendo na boca 
um do outro. Por isso é que 
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento 
da brisa, no sorriso, no peixe, 
no cubo, no linho, 
no mosto aberto 
- no amor mais terrível do que a vida. 

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz 
o perfume da tua noite. 
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua 
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre 
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca 
ao círculo de meu ardente pensamento. 
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam 
sobre o teu sorriso imenso. 
Em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente 
das urzes, um silêncio, uma palavra; 
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua 
vermelha. 
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos, 
casa de madeira do planalto, 
rios imaginados, 
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas 
maravilhosas da noite. Ó meu amor, 
em cada espasmo eu morrerei contigo. 

De meu recente coração a vida inteira sobe, 
o povo renasce, 
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora 
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma 
de crepúsculos e crateras. 
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome 
encanta pela noite equilibrada, imponderável - 
em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se 
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro 
da tua entrega. Bichos inclinam-se 
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando 
contra o ar. Tua voz canta 
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com 
o lento desejo do teu corpo. 
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo 
eu morrerei contigo. 

Herberto Helder