01/02/2021

à escuta

 

“Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo:

ouço-me para dentro.”

E não tardam

as dispersas primaveras,

uma atrás da outra.

Passa no mundo a estranha ventania. 

(...)

Por trás da imobilidade, horas verdes

caem de espaço a espaço

— gotas de água no fundo de um subterrâneo.

E em volta um círculo de montanhas atentas.

No alto da noite côncava e branca,

uma camélia gelada. E metem as árvores

para o interior

a tinta e os ramos.

Absorção

dolorosa, diamante polido, vegetação

criptogâmica.

— O tempo.

E o céu. Basta-nos o nome para lidar

com ele.

O céu.

Uma nódoa que se entranha

noutra nódoa.

— A água tem um som.

Mar inesgotável que desliza no silêncio.

Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo:

ouço-me para dentro. Mal posso

dar no mundo um passo

sem tremer; sinto-me

balouçado num sonho imenso, ando

nas pontas dos pés.

E estou só e a noite.

Há palavras que requerem uma pausa e silêncio.

 

Herberto Helder



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