Asdrúbal espera ansiosamente na estação de Massamá o comboio que não chegava com destino ao Rossio. Era assim todos os anos véspera de Natal, os 4 amigos já satisfeitos com sonhos e infinita generosidade intimados a percorrer mesmo caminho , rumo a Belém para adorar o residente. Quase 11 da noite e comboios nada. Apenas um fulano mascarado de Pai Natal com barba postiça a devorar uma sandes de ovo e punhado de carteiristas que fumam ao lado da máquina vandalizada. Sobram pacotes de M&Ms e Matutano com sabor a presunto pelo chão, mas nem isso demove o rafeiro que se aninha em redor da máquina. Está uma noite “bem escura, bem ventosa, bem fria e húmida”. Do comboio nada! nem o cheiro a lenha queimada, nem o palhaço ou o coelhinho de chocolate. Asdrúbal sentiu um arrepio de preocupação. Devia ter acabado aquela fatia dourada que Belchior não quisaer,e da preciosa carga que trouxera as mil e uma paragensapenas sobrara um precioso pacote de bolachas Maria. O seu amigo Álvaro (o simpático Álvaro que um dia disse Álvaro é o meu nome, sem ministro pelo meio) disse que estávamos em plena crise e havia que cortar nos gastos e trabalhar mais. Este era o seu trabalho, o seu modo de vida, todas as noites desde sempre, todas as véspera na noite de alegria,pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem, e dar-lhes coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, pelo menos até ao Natal seguinte. Um dos carteiristas abeira-se e oferece-lhe um cigarro em troca de lume. Asdrúbal empalidece com temor mas aquece aquela troca de olhares sinistra, com a chama do Zippo. O carteirista [temporariamente desempregado por falta de clientela] questiona-o sobre tão estranha indumentária ainda para mais, só numa estação em pleno dia de greve. Asdrúbal agradece, mas continua com o olhar fixo no relógio cujo ponteiro dos minutos parou no tempo. Tantas horas perdidas e podia ter apanhado um táxi directo para Belém. A esta hora provavelmente já Belchior, Baltazar e Gaspar se banqueteiam na Pensão Estrelinha por entre as couves a emoldurar o bacalhau comprado na merceearia do bairro. Se calhar, já foram a Belém entregar a encomenda que chegou hoje de manhã pela DHL e em Belém, alguém já faz pesa o ouro prara trocar amanhã na loja nova da esquina.. Por tradição só depois é que seguem juntos até à paragem do 28 rumo ao Oriente e dai para o Natal seguinte. Farto daquela solidão exasperante Asdrúbal acerca-se do fulano do fato vermelho que já balanceava o saco do Continente com uma exasperante impaciência. Então amigo, que faz por aqui a estas horas? Já deu de comer às renas e agora descança? O dito puxa da barba que lhe atrapalhava a respiração e num hálito impronunciável repele: a puta que os pariu! Asdrúbal é fulminado por este amargo de boca por entre um esgar de rancor. O contrato falava apenas num dia com direito a duas horas para pausa de almoço e jantar, mas em vez disso, colocaram-me em frente à escada rolante sentado numa cadeira e obrigaram-me a vender um cd com a Leopoldina e a tirar fotografias com uma Popota. As pobres das criancinhas até fugiram de mim. Assim não vale a pena. E nem pagaram o almoço. Fomos todos enganados, eu as crianças e os pais que cairam na ilusão de tamanha bondade. Não admira que hoje em dia eu me sinta um fantoche, um boneco que é pendurado nas varandas. Noutros temposeu circulava no Rossio e nos Restauradores e elas vinham ter comigo. Hoje exigem o 9.º ano e uma carrada de papéis com o número da segurança social, o número do contribuinte, e o diabo que os carregue. O pobre homem continuou a carpir blasfémias, mas a noite tudo silenciava. Noite Feliz, dizem. Fazia-se tarde e Asdrúbal tinha que optar entre continuar a ser sondado pelos carteiristas ou fazer-se à estrada. Desceu as escadas e depois de levantar algum dinheiro no Multibanco ao lado da bilheteira fechada e acordou o taxista que lia a Bola num sonho de extremo cansaço. Para Belém! que já estou um bocado atrasado. O Mercedes lançou-se a toda a velocidade pela IC19 apinhada de famílias felizes apinhados de prendas e caixas de bolos que tronavam o aroma da noite tão doce como oum céu estrelado. Nem mesmo um trenó seria mais rápido com todo aquele trânsito. A conversa no táxi foi a mesma lengalenga estafada de sempre: a troika, os chineses da EDP, os malandros do Governo, os corruptos e os ladrões disfarçados de banqueiros e o fogo de artifício do Alberto João. Ainda houve tempo para aquele cliché do meu tempo era assim, no meu tempo era assado, frito cozido e grelhado. E tão depressa como a conversa se esvaziava nos lamentos da falta de dinheiro da clientela, a bandeirada aumentava, de tal forma que foi necessário antecipar a paragem. Sobravam 0,12 € na bolsa, ainda o suficiente para comprar uma acção do BCP. Agora eram só mais uns metros ao longo da Rua da Junqueira. Nada que um camelo não fizesse de bom grado. Belém já se via ao longe, agora com menos iluminações de outros tempos, apenas umas pequenas grinaldas de luz compradas na loja do chinês penduradas nas janelas de madeira dos casarios antigos. Asdrúbal seguiu a passo acelerado, quando de repente é interceptado por uma voz. Esmola! Esmola meu bom senhor para um pobre desempregado do ramo da sucata e cheio de fome. Asdrúbal detém-se por momentos, e perante o tormento não resistiu pegar nas poucas moedas que sobravam da desvalorização em bolsa e encheu a mão do pobre vulto, queimada pelo frio. Tome estas! São poucas mas certamente com algumas bolachas que aqui trago são certamente o melhor que lhe posso dar neste momento. Obrigado caro amigo, noutros tempos dar-lhe-ia uma caixa robalos ou um presunto, mas neste momento de aflição só lhe posso agradecer. Asdrúbal sentiu um aperto no coração mas seguiu em frente. Passou o pórtico de saída da Rua da Junqueira e entrou na Praça de Belém onde já o clamor de uma multidão se detinha à pota do antigo Museu dos Coches. Era uma manifestação de descontentes, jovens anarquistas e avaliadores de acidentes de viação, numa orgia de megafones e cartazes com reptos anti tudo e contra nada em concreto. Era quase meia-noite e já o galo avisava a luz que se aproximava. Asdrúbal questionou um grupo isolado sobre o motivo da manif e logo foi bombardeado com um discurso acalorado sobre Keynes, o fim da liberdade, e a tirania do poder económico sobre débil donzela democrática, o blá, blá típico do Facebook e do Twitter mas com litrosas e ervas aromáticas enroladas em papel de arroz. Já se fazia tarde e a missão obrigava a atalhar as questões sociológicas. Depois de tocar á porta, o sinete deu lugar a uma voz colocada “Obrigado por ter tocado, mas os serviços encontram-se fechados. Por favor visite-nos nos dias úteis no período entre as 9 da manhã e as 17 horas da tarde. Esperamos por si. Tarde demais, e lá na pensão o bacalhau já devia estar frio. Asdrúbal sentiu o desânimo de quem não conseguiu cumprir a sua demanda. Certamente que os serviços das Finanças não iriam deixar em claro este esquecimento, e o facto de não ter dinheiro para pagar a passagem pelo pórtico da Rua da Junqueira sem o aparelho da Via Verde ia pesar na multa a aplicar. Talvez se tivesse dado o pacote de bolachas ao pobre homem deitado na amargura da calçada fria fosse um bom investimento e acções acabassem por subir? Ou se tivesse permanecido mais tempo com os jovens indignados tudo fizesse mais sentido depois de uma baforada daquele tabaco com um sabor estranhamente cativante? Certamente que a companhia do Pai Natal enganado seria a melhor forma de recordarem outros tempos em que o Natal tinha outra vivência, e por momentos se sentissem úteis ainda que por poucos dias. Quem sabe se o taxista não poderia ter perdoado aqueles últimos metros e a bandeirada por momentos ficasse congelada no limbo? Apagou o último cigarro que sobrara e desligou o IPAD. Para o ano será diferente, ou talvez não!? Talvez para o ano saia um modelo novo, e quem sabe em vez de um pacote de bolachas possa oferecer uma caixa de bombons?
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