Não vou falar de praxes pois é
assunto que no momento actual foi arquivado na secção de futilidades. Vou antes
falar do misterioso desaparecimento de Josef K..
Josef K. desapareceu das estatísticas
do desemprego. A notícia circulou na semiobscuridade dos meios de comunicação
social. Podia ser mais um desaparecimento de uma não pessoa, não fosse o caso
de juntamente com ele, uma centena de milhares de linhas nessa lista de
inoportunos, ter igualmente passado para o anonimato da inexistência. O rapto é
um assunto sério, e provavelmente crime, mas o desemprego, uma coisa aborrecida,
pelo menos para alguns. Menos para o senhor Huld.
Estranhamente não foi apenas
Josef K. que deixou de constar do mundo dos inocentes. A senhora Bürstner, e
milhares de outras deixaram de beneficiar do RSI: Provavelmente deixarão de
viver o fausto das suas vidas e regressar a uma (in)existência mais terrena.
Todos incapazes de confessar o seu pecado original, arguidos e condenados pela
falta de esperança, pelo excessos cometidos, irremediavelmente condenados a
viver com o estigma de não serem capazes de seguir os ditames da nova classe dirigente.
O mundo que lhes existia assim mesmo, deixara de lhes assistir. Restava-lhes
então fatigar essa culpa formada, com o silêncio ou a resignação.
A vida da Leni também sofreu um
abalo com o desaparecimento de Josef K.. Obrigada a partir, sem lugar certo
para ir, vê-se confrontada com o vazio dos dias que passam sem que a luz de
esperança lhe devolva o sentido da alegria, que antes ousara sentir.
m contrapartida Karl, vivia a
melhor das suas vidas, mesmo sendo velho antes de o ser, aprendera a suportar a
realidade com um sorriso estampado. Dizia muitas vezes, entre amigos, que o
presente era indubitavelmente mais suportável do que o passado recente. Pelo
menos agora os netos iam para a escola calçados, enquanto no seu tempo, o toque
suave da tinta-da-china e o pó de giz eram os únicos vislumbres de modernidade,
numa altura de fome e repressão. Talvez tivesse razão. Em boa verdade, o país
não era mesmo de há quarenta anos. Obviamente Josef K. discordava com esta
opinião. Agora desaparecera.
Contactado por Leni, o senhor Huld
tentou sem sucesso (não espanta) descobrir o paradeiro de Josef K.. Era conhecida
a sua admiração, mais ainda a abnegação pela nova ordem. Um dia confrontado com
essa estranha incapacidade em materializar algo mais concreto do que meras
suposições, Leni confronta-o. A ansiedade tinha-se transformado em obsessão:
- Existira então esperança fora desse
mundo de aparências que conhecemos?
Huld riu-se.
- Há esperança suficiente, esperança infinita,
mas não para nós!
Talvez um dia Josef K. regresse.
Talvez tudo não passe de um sonho aparente.
“Deixai, ó vós que entrais, toda
a esperança!”
Dante, Divina Comédia