09/02/2014

...o ano em que Josef K. desapareceu

Não vou falar de praxes pois é assunto que no momento actual foi arquivado na secção de futilidades. Vou antes falar do misterioso desaparecimento de Josef K..
 
Josef K. desapareceu das estatísticas do desemprego. A notícia circulou na semiobscuridade dos meios de comunicação social. Podia ser mais um desaparecimento de uma não pessoa, não fosse o caso de juntamente com ele, uma centena de milhares de linhas nessa lista de inoportunos, ter igualmente passado para o anonimato da inexistência. O rapto é um assunto sério, e provavelmente crime, mas o desemprego, uma coisa aborrecida, pelo menos para alguns. Menos para o senhor Huld.
Estranhamente não foi apenas Josef K. que deixou de constar do mundo dos inocentes. A senhora Bürstner, e milhares de outras deixaram de beneficiar do RSI: Provavelmente deixarão de viver o fausto das suas vidas e regressar a uma (in)existência mais terrena. Todos incapazes de confessar o seu pecado original, arguidos e condenados pela falta de esperança, pelo excessos cometidos, irremediavelmente condenados a viver com o estigma de não serem capazes de seguir os ditames da nova classe dirigente. O mundo que lhes existia assim mesmo, deixara de lhes assistir. Restava-lhes então fatigar essa culpa formada, com o silêncio ou a resignação.
A vida da Leni também sofreu um abalo com o desaparecimento de Josef K.. Obrigada a partir, sem lugar certo para ir, vê-se confrontada com o vazio dos dias que passam sem que a luz de esperança lhe devolva o sentido da alegria, que antes ousara sentir.
m contrapartida Karl, vivia a melhor das suas vidas, mesmo sendo velho antes de o ser, aprendera a suportar a realidade com um sorriso estampado. Dizia muitas vezes, entre amigos, que o presente era indubitavelmente mais suportável do que o passado recente. Pelo menos agora os netos iam para a escola calçados, enquanto no seu tempo, o toque suave da tinta-da-china e o pó de giz eram os únicos vislumbres de modernidade, numa altura de fome e repressão. Talvez tivesse razão. Em boa verdade, o país não era mesmo de há quarenta anos. Obviamente Josef K. discordava com esta opinião. Agora desaparecera.
Contactado por Leni, o senhor Huld tentou sem sucesso (não espanta) descobrir o paradeiro de Josef K.. Era conhecida a sua admiração, mais ainda a abnegação pela nova ordem. Um dia confrontado com essa estranha incapacidade em materializar algo mais concreto do que meras suposições, Leni confronta-o. A ansiedade tinha-se transformado em obsessão:

- Existira então esperança fora desse mundo de aparências que conhecemos?

Huld riu-se.
 - Há esperança suficiente, esperança infinita, mas não para nós!

Talvez um dia Josef K. regresse.
Talvez tudo não passe de um sonho aparente.

“Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”
Dante, Divina Comédia

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