18/02/2018

..estrada para Damasco



..não há nada mais complicado do que tentar encontrar um taxista no aeroporto de Ankara que entenda minimamente inglês e que esteja disposto a seguir viagem para Damasco. Não é que a estrada não esteja exemplarmente asfaltada ou que portageiros zelosos a averiguar a se a altura do táxi no eixo da frente é superior a 1,10 para impor uma classe 2 ao meu motorista (obrigado PSA pela clarividência!), mas porque é pouco seguro circular em pleno séc. XXI na estrada para Damasco. Diria mais traiçoeiro.

 
(foto: Michael Perlov)


O que diria jovem Salo de Tarso, se nos dias de hoje tentasse perseguir cristãos e homens santos nessa estrada. Provavelmente optaria por um lugar mais confortável e igualmente sanguinário, como colunista de um pasquim jornalístico ou presença assídua em prime-time depois do noticiário como comentador de factos consumados? De facto, tal como o nosso caro D. Manuel refere na edição desta semana do Expresso, a Igreja nos dias de hoje não tem boa imprensa. Eu diria que são Salos em excesso. Também é certo que a Igreja também se coloca a jeito.


A força telúrica que lhe iluminou a proposta para os recasados através da Nota Apostólica, a fé amassada na revolta de inúmeras organizações religiosas contra esta abertura patrocinada pelo Pontifex Maximus Francisco, incito-o a mover montanhas, e debitar um “resumo” de um lirismo onírico onde os casados amam e discutem apenas como irmãos. A sagrada aliança matrimonial transformada numa relação asséptica, entregue à serenidade do amor tântrico. É claro que a leitura da nota, foi desmesuradamente e propositadamente deturpada para criar alguma cidez no discurso e na opinião pública, mas isso é um facto que a Igreja ainda não sabe como lidar. Aliás a igreja tem uma noção de tempo que relamente ocupa ainda demasiado espaço.

Ainda assim, e tendo presente a leitura atenta da entrevista do D. Manuel  (aliás os meus parabéns ao repórter fotográfico pelo enquadramento humilde mas digno de tão alto dignitário), reforça tudo aquilo que senti quando li o tal “resumo”. Não obstante a defesa do José Manuel Fernandes no Observador, o próprio D. Manuel admite que talvez uma nova redacção da nota, com outros contributos (olhe por exemplo veja o trabalho que a Arquidiocese de Braga está a fazer nesse âmbito) possa aclarar melhor a vereda por onde se entrincheirou. Não será necessário um Ananias para fazer alguma luz no esclarecimento, mas...


A estrada para Damasco, tal como no princípio da nossa era, esconde muitos check points devidamente barricados à liberdade de expressão e pensamento; todo o clamor que saia da concepção de um certo grupo, vulgo do politicamente correcto ou teologicamente discernido passa a ser abertamente discutido e hostilizado. Há sempre duas soluções: a fogueira ou a aceitação. No caso da Igreja, a fogueira tem sido o joker mais habitual no que respeita a opinião pública.


Se bem me recorde, no Novo Testamento, a mensagem estava quase sempre direccionada contra os mais fracos, os desprotegidos, os pecadores e impuros,não de uma forma aviltante ou repressiva mas sempre com uma manifestação de aproximação, de aceitação. Pelo contrário, os hipócritas e todos aqueles que ostentavam uma fachada de grande religiosidade eram normalmente desmascarados. 

"(...) Assim, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa."

Mateus 6

A leitura que sempre fiz sobre a religião, desde que me sentei numa sala com outros pequenos como eu, foi sempre uma mensagem de amor, afecto e amizade. A Igreja não deve impor, deve propor. Claro que essa lógica nem sempre foi seguida à letra ao longo dos séculos, mas isso são apontamentos que devemos interpretar e analisar do ponto de vista da história e dos contextos de cada sociedade.

Espanta-me que em pleno séc. XXI este tipo de assuntos atinja a máxima polarização e animosidade nas redes sociais, dentro e fora da Igreja, tratando-se de um tema off-topic por natureza. Em boa verdade, os nossos princípios constitucionais não estão fundamentados na lei constitucional do tempo da monarquia liberal. Se a memória não me falha, a separação entre o Estado e a Igreja foi decretada já na Constituição de 1911, daí que polémicas sobre orientações desta ou aquela igreja, confissão religiosa, desde que não interfiram com o domínio do “que é de César”, ´só devem ser discutidas pelos órgãos próprios. Já o mesmo não se aplica futuramente com uma questão maior como a despenalização da morte medicamente assistida (tópico num futuro próximo). O casamento religioso é um assunto que "não é de César".

O jovem Saulo fazia furor ao chacinar cristãos inocentes, quebrou quase todos os sacramentos, mas foi a caminho de Damasco que teve a visão que tudo alterou. A estrada para Damasco é uma vereda por onde cegos, caminhamos rumo a algo que desconhecemos certos do destino que ansiamos. A verdadeira estrada de Damasco é antes, um caminho interior que só à luz do discernimento e do pensamento seremos capazes de percorrer sem hesitações. A verdadeira estrada para Damasco é uma estrada de humildade em que cada um ouve e entende as dúvidas do próximo, e adquire para si as fraquezas dos outros.É uma estrada de comunhão e compaixão.

Lograda a viagem para Damasco, sigo de táxi para Jerusalém. Espero não encontrar grandes adversidades nesta próxima etapa, nem apupos como a Eliana Fraga . Aqui fica a dica sobre a próxima prelecção:


«Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem traça nem ferrugem corroem e onde ladrões não minam nem roubam: Para onde está o teu tesouro, aí estará o seu coração também.»

                                                                                                                 Mateus 6

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