09/08/2010

...dantes quando o sino tocava

…estivessem as estrelas adormecidas no profundo sono da noite, ou o sol no seu ponto mais alto, o sino repicava insistentemente com a presença de um fogo no alto do monte. Os chefes de família logo tratavam de acordar os mais empenedridos na constelação de sonhos, ou o jovem pastor deitado em nos pensamentos à sombra do carvalho enquanto vigiava o rebanho que fazia das suas, na seara do vizinho. Era um tempo em que a entreajuda era lei e o clamor do sino a todos diria respeito, pois o bem de uns era tão importante como o bem comum. E lá iam monte acima apagar o fogo que alguém por leviandade ou por mera maldade teria iniciado. Nesse tempo, o monte era o agreste tojal que alimentava as camas dos animais, abrigo de rebanhos em tempos de escassez, e que em última instância seria o estrume que alimentava o pão de muitas bocas famintas. A floresta por seu turno era o guardião da vida, fonte de rendimento para muitas casas e calorosa companhia nas noites frias e húmidas de inverno. As fagulhas as pinhas alimentavam as conversas de serão e aquecia o coração desanimado de quem lutava pela vida e ansiava por um futuro melhor para os seus. As famílias eram numerosas, braços que ritmavam a terra no tempo das lavras, vozes que cantavam as desfolhadas e pernas que derramavam o vinho que matava sede e alimentava a alma. Era o tempo em que a ordenha era madrugadora, e o caminho trilhado descalços até ao posto do leite, eram as migalhas de farelo e a farinha do capoeiro. Esse ritual diário, ponto de encontro das moças namoradeiras vestidas com a melhor roupa, manto de longos olhares de corte e sedução, mas descalças. Quantas promessas foram cantadas, quantos poemas escondem as pedras que o inverno e a chuva amoleceram e moldaram nesse trilho que hoje percorro a pé. Eram os tempos da junta de vacas que vagarosamente lutavam “contra a mosca”, carregadas até à exaustão do milho e a carocha monte acima já noite dentro. Eram o tempo em que os pés descalços encaminhavam a água das poças no lameiro, em que uma toalha de de água escorria no verde prado de lima coberto de pequenas flores e sonhos.

Esse tempo acabou. Agora sobram os casebres abandonados, despidos de vida, rodeados de mato e silvedos. O sorriso das crianças de outrora ouvem-se ao longe, e nem o sino da igreja conta o passar do tempo como ontem. Sim, parece que foi ontem. Sobra o barulho dos carros ao longe, na estrada emergiu da vontade de alguns e que manchou a pacatez da aldeia. Ouve-se um ou outro tractor que diariamente leva o mato, e pouco mais. O fogo come a terra, e o sino já não dobra pela vida de outrora. Aparentemente tudo se perdeu no esquecimento, e já nada nem ninguém acorda da letargia em que o presente caiu. É triste quando o passado recente só se revive como uma fábula do antigamente. E isso vê-se nos rostos de quem conta. Ouve-se a tristeza em cada palavra. Já não há presente, apenas um “dantes quando sino tocava…”.

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