31/12/2022

...terra nullius


Após dois anos em que nos refugiamos num mundo quase asséptico, em que quebramos o pacto solene de confraternizarmos até à exaustão, juntemos uma constatação importante: se a pandemia nos tornou reféns das redes sociais, da saudável distância (muitas vezes autoimposta outras imposta), a guerra que agora nos bate à porta, introduz novos condimentos: controlo, vigilância, a eliminação de opiniões contrárias à linha oficial, e mais e mais propaganda e contrapropaganda.

Se durante a pandemia, fechamos salas de espectáculos, silenciamos a arte e a cultura, e mais uma vez combatemos de forma insana quem pensava de forma diferente, agora com ou sem aforismos, nem metáforas fáceis, entramos na dimensão do inenarrável.

Quando do outro lado da “cortina de ferro” (desenterrei este tesourinho do pós-guerra), assistimos à diabolização do Ocidente (comparativamente à aura renascentista da cultura eslava) e, em simultâneo no outro extremo - no Império do Meio (ao lado daquela península onde um louco brinca com misseis balísticos) -  ouvimos o troar da união dos povos progressistas contra o maldito imperialismo ocidental, entramos gradualmente numa retórica que inevitavelmente conduzirá a ao recrudescer da desumanidade e ao colapso da humanidade como a imaginamos durante estas últimas décadas. Sim. Durante as últimas décadas vivemos uma fantasia de enamorados.

E como se tudo não bastasse, para além da fome, da guerra, do desespero de milhões que tentam atravessar fronteiras, ainda assistimos à barbárie perpetuada por fundamentalistas religiosos que interpretam os ditames da religião que confessam, como símios a interpretar a teoria da evolução das espécies do Darwin. Para completar o ramalhete de preciosidades, a proibição das mulheres de frequentar o ensino no Afeganistão, entra num plano que não é possível postular com algum tipo de coerência filosófica.

Assim de súbito, quase apetece rumar em direcção a uma qualquer terra nullius e aí respirar algum tipo de paz interior, longe, muito longe, para lá do horizonte dominado pelos antagonismos entre os povos, dos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas, etc.

Não há forma de entender este admirável mundo novo, nem lendo até à última consoante, até ao último sopro de força.


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