04/05/2014

...nas asas de um anjo


Não gostava de ser mosca para estar dentro do conselho de ministros. O assunto que hoje é ardiloso mas tem um renovado interesse, ou quase nenhum. Mais uma mentira em formato pdf com o rótulo de confidencial, que vai dar origem a uma a duas folhas A4, condimentadas com a ignorância de quem as vai ouvir e o desprezo de quem as vai ler, com as prerrogativas da conquista da autonomia, da liberdade, blá, blá, blá!  O DEO, qual anjo caído em desgraça [por aqueles que ainda ousam pensar um pouco neste país] foi o mote para o destino imaculado que nos está a ser apresentado neste momento em directo do Palácio de São Bento. 

"No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise."
 Dante Alighieri

Longe de ser um lanche dos conjurados [a léguas do jantar de 1640] apraz-me sentir algum alívio por estar a terminar este passo, da nossa árdua caminhada até finalmente algures no séc. XXI quando pagarmos uma parte substancial da nossa dívida e nessa altura [finalmente], os representantes do triunvirato abandonarem definitivamente o nosso país. Nessa altura provavelmente o relógio do Paulo, deverá ser uma peça esquecida numa manta na Feira da Ladra. Da multidão gritam, reestruture-se a dívida[vide manifesto dos 70+4]. Céus! que drama se abateu por todos aqueles que ousaram apresentar uma via alternativa!Excomungados. A Alemanha também teve um perdão de dívida,  e não foi esse factor que a depreciou como país; sobre a Islândia prefiro nem abordar o tema, pois o bacalhau é de excelente qualidade; a Grécia já teve vários perdões, alterações da taxa de juro, reestruturação das maturidades da dívida, e não é por isso que Santorini vai volta a entrar em erupção, isto partindo do princípio que ainda não foi vendido!? A Finlândia em tempos também viu parte da sua fome amenizada com o contributo português, e não é pelo simples facto de agora estarem do outro lado da barricada que vamos deixar de olhar com desconfiança para eles [o mesmo não sucede com os telemóveis da Nokia!]. Os nossos grandes amigos holandeses. Uns verdadeiros gentlemen. Só nos podem agradecer o facto de os termos expulso os judeus de Portugal [infelizmente não preservamos a herança de D. Afonso V e só tivemos a clarividência de extinguir o Tribunal do Santo Ofício, em 1821!]. Assentaram  arraiais na Flandres e floresceram à custa da nossa falta de visão no comércio mundial da época em que jorrava ouro no cais da Praça do Comércio, onde agora sobram lamentos e manifestações.

Somos um povo que deu "novos mundos ao mundo", saga cantada em verso por um grande fidalgo expatriado conhecido pela sua fama de mulherengo e exímio devedor; um bando de homens lutadores de bom coração que se orgulham do seu legado humanista. Gostei de saber que o Paulo entregou a versão inglesa dos Lusíadas aos senhor Subir Lall e aos seus pares. Também gostaria de oferecer ao Portas o Envageli Gaudium em latim, para que de uma vez por todas abandonasse aquela veia de provincialismo bacoco com que nos brinda com as suas analogias deprimentes sobre os valores cristãos que tanto apregoa. Como sugestão, talvez para a próxima reunião de "vigilância reforçada" com os senhores da Troika, "A Queda de um Anjo" do Camilo Castelo Branco.  Indubitavelmente a  obra que encaixa melhor com o moralismo intrínseco à matriz sociopata do Palácio de São Bento.
Para leitura de cabeceira, deixo aqui este quadro com os meus agradecimentos ao Banco de Portugal. Penso que é um bom resumo para três anos em que mais do que reestruturar, refiundar o Estado e mudar o rumo do país, apenas se destruiu a esperança de milhões e iludiu outros tantos com um chorrilho de mentiras e declarações indigentes:



A realidade dos números supera grandemente a ardilosa vontade de enganar os ignorantes e os pobres de espírito [Boletim de Estatísticas do Banco de Portugal]. Mas quem sou eu para afirmar que o país está definitivamente pior?

“Deixem entrar a luz!” 
Goethe

Mas olhemos para o futuro com ânimo. O testamento de um Governo, que a alguns iludiu [mea culpa], é um farol que nos permite seguir rumo ao canto da sereia com alguma segurança. Ainda num contexto de um "colossal aumento de impostos", fomos presenteados à coisa de alguns dias com uns ligeiros retoques na taxa de IVA e na TSU, prometidos com ansiedade para o amanhecer de 2015. Não. Não se trata de aumento de impostos. Longe disso [esta parte do texto deve ser lida com o mesmo entusiasmo do discurso Crispin Crispian da peça shakespeariana Henrique V].

Mas há mais. Apesar da previsão do aumento das receitas fiscais em termos percentagem do PIB para este ano e para 2015, anda a pairar no ar a ameaça de suavização do IRS para as famílias [por norma a descida de impostos é oferecida com um tom mais sauve e floreado do discurso; vide última conferência de apresentação do DEO e para a água de rosas que emana da boca da nossa ministra da fazenda pública!]. Isto depois de um aumento do horário do trabalho, do congelamento das carreiras, da redução de trabalhadores, do aumento dos descontos para a ADSE, da alteração da tabela remuneratória, da redução dos suplementos, e ainda falta descortinar a famosa tabela salarial única. A reposição de 20% com promessa de novo aumento daquilo que foi tirado  [dixit], indexado à evolução da economia e a redução do número de funcionários públicos e massa salarial, é algo similar a uma fatia de de queijo de Azeitão condimentado com raticida. Só come quem está cego de fome.



Perguntam-me se o governo fosse de outra cor partidária, o panorama seria idêntico. Respondo com a mesma ironia utilizada pelo senhor Obama, a rosa seria o novo negro. Talvez de forma mais fofinha, com aquele aroma de humanismo social que caracteriza o socialismo europeu. Talvez o problema não esteja na cor partidária, mas antes na filosofia e na praxis que corrompeu e destrói o sonho e a caminhada europeia idealizada no Tratado de Roma, antagonizada no Tratado de Maastricht e desfeito no Tratado de Lisboa. Hoje somos uma Europa de estados devedores e estados credores, em que os primeiros determinam o destino dos segundos a seu belo prazer. Talvez o problema não seja nosso, talvez o problema não seja do Camões, talvez mesmo, o anjo nunca tenha tido asas para voar?

“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
De Deus no prémio da imortal ventura.

“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso."

Dante Alighieri