24/04/2025

…no ano em que o cuco não cantou




 …é um lugar comum dizer-se há uma estrela que à noite vai brilhar mais no céu. Não é o caso. Todas elas têm o mesmo encanto, independentemente da luz que anunciam. Alguns até são planetas, e apenas refletem. Esta noite serão exactamente as mesmas estrelas d’ontem, mas diferente a maneira de as contemplar. Mas o que me traz por aqui não é uma reflexão sobre astronomia, mas sobre a marcha do tempo. Amanhã prossegue o trabalho artesanal desta Primavera que floresce. O

mesmo chilrear do estorninho, a mesma azáfama na capoeira, a erva que não para de verdejar, o ruído suave das motas que  circulam, o lento anunciar d’ horas do sino, e por ai adiante. Não obstante, as ovelhas não vão sair da corte, pois a pastora não vai estar. Ainda assim, as tulipas continuam a crescer, tal como os lírios no campo, e as nuvens ornar o azul do manto sobre o vale verdejante. E passado este clamor de cores e sons mais ou menos melodiosos, o melro há-de cantar, assim como o cartaxo ou o pintassilgo; quando o estio estiver no auge, lá andarão as ovelhas felizes no prado de lima, enquanto mais acima, a pastora as há-de guardar. O relógio na torre continuará a cantar as horas e já quando os dias começarem a minguar, o pintor irá por certo anunciar a boa vindima e no campo, a espiga será pão p’ra todo o ano.  Segue-se a desfolhada e a vindima, e num lapso de tempo, as chuvas que o outono nos trás, convite p’ro serão do crepitar as castanhas no lume de caruma. Quentes e boas, fruto do souto, que dá nome à terra que a viu crescer. É altura do vinho novo e uns tempos depois, o Advento, e com ele o frio e o vento  que nos aquece a alma desnuda a folhagem do ramos. O vale ganha agora tons terra, e os dias dos menos do que o sono das horas. Quando damos por ela,  é Ano Novo, e por entre o foguetório e a lembrança do ano que passou, a pastorinha continuará a andar por cá, bem cá dentro. Vem o Janeiro, o Março em voo de andorinha e de novo a Páscoa do Senhor . Os dias prosseguem, e há medida que as estórias forem aflorando na memória, a pastorinha continua sempre por perto, mesmo cá dentro. E quantas estórias não hão-faltar, tantas ou mais que as memórias. Mais do que estrelas nesse céu que todos os dia nos enche de uma escuridão bonita. Por isso, e por uma imensidão de motivos, não será esta a noite que a tal estrela irá brilhar. É muito mais do que um mero cintilar, são todos os momentos que foram

e continuam por cá, bem dentro. 

É tudo isto no ano em que o cuco não cantou….


05/01/2025

…da inútil precaução das primeiras horas

 Não sei se já se ocuparam em desvendar o enigma do calendário de 1969, mas é em todo invulgarmente semelhante ao novo ano que agora anda por deambula. Pode-se afirmar que será inútil ir a correr comprar uma agenda de 2025, se podemos recuperar aquela agenda amarelecidade no sotão das recordações perdidas. 69, esse singular ano, cujo Maio que floresceu em 68 no Quartier Latin, chega a Portugal com um ténue aroma a liberdade  ianda poética que contrastava com uma dita primavera marcelista -  um prado de flores, um jardim sem cor).

Talvez seja isso mesmo que nos falta para sermos felizes, uma espécie de primavera que se propague , como um vírus, sem necessidade de máscaras, isolamentos, muros intransponíveis que nos cerquem a mente e nos toldem os sentimentos. Uma primavera em que todas as cores são únicas e nunhuma se destaque, amarela, rosa, branca, negra, azul, castanha. Um jardim bemformoso.

Porventura, o que nos falta para começarmos a ser felizes, é tentar ocupar as horas destes dias que por agora crescem, como vagabundos à procura de novas estórias, sentado à porta de uma livraria, rebuscando páginas de livros à procura desta ou daquela frase épica. E se conseguíssemos erigir cidades de parágrafos, multidões de páginas, de modo a preencher esses jardins mitológico que sonhamos para a Babilónia?

Talvez kronos nos fantasiasse um novo tempo que nos deixasse absortos e contemplativos, perante o silêncio e a imensidão bela, dessa palavra elementar chamada paz.

É desta forma que sentados à sombra duma árvore chamada esperança, ainda interrogativos, vemos passar estas  horas iniciais ,com uma inútil precaução que este novo tempo seja bem melhor do que a montanha-russa de desespero que foi o antigo testamento que os antigos nos deixaram em herança.

 Sonhar por um mundo melhor, será como passar além do Rubicão?