13/02/2018

...o taxista de Kabul



Aviso à navegação: esta conversa teve lugar enquanto circulava de táxi entre a rua Sulh e a Avenida Great Massoud em direcção ao Aeroporto de Kabul. Qualquer semelhança com a ficção é pura realidade. 

O Sr. Maalouf é o taxista de serviço. Nascido e criado na etnia usbeque, confessou-me mais tarde detractor do actual diktat em funções no "governo-fantoche afegão". Durante o percurso (estive hospedado no sofrível hotel Ariana), falamos um pouco de tudo, depois de quebrado o gelo inicial. Bastou referir que era português e, graças ao Ronaldo, vislumbrei o primeiro sorriso amarelecido pelo tom opióide da dentição do meu taxista.


O Sr. Maalouf é assumidamente de esquerda. Ficou curioso com a actual composição política portuguesa (tinha que o testar!), sobretudo ao misturar um partido de génese socialista com partidos de suposta “extrema-esquerda”. Expliquei-lhe que não é bem assim, e que tinha sido carinhosamente baptizado de “gerigonça”.

"O PCP vai para o Governo quando o povo português o entender. Naturalmente, esta nova solução política encontrada foi conjuntural e que dificilmente se repetirá"

Jerónimo Sousa, Setembro 2017, acção de campanha eleitoral

“[Um bloco central] não seria saudável para a democracia.”

Manuel Alegre, Janeiro 2018

Uma habilidade linguística que provavelmente quem a proferiu nunca imaginou ter criado um verdadeiro jargão político com uma boa aceitação nos parceiros europeus (até já colocamos um Centeno "Ronaldo" como Presidente do Eurogrupo). Explicar o conceito "geringonça" ao Sr. Maalouf foi relativamente fácil; basta circular em Kabul para vermos algo semelhante na azáfama do dia-a-dia. Geringonças e soluções criativas é coisa que abunda por estas bandas. Uma questão de sobrevivência diria mesmo, tal como sucede em terras lusas.

Para evitar a continuação dos anos da troika, engolem-se uns sapos, iludem-se as massas e no final vivem em saudável comunhão como irmãos num “estado de graça”, ainda que tenha perdido metade da  piada. Expliquei-lhe em tom irónico que apesar do partido mais votado ter sido o social-democrata, manter a mesma solução até ai, era como sentar um cardeal a ver as 50 Sombras de Grey. A situação não iria evoluir. Não lhe falei que temos um Presidente da República com paixão por selfies e capacidade omnipresente de estar em vários lugares ao mesmo tempo, Seria uma tarefa teologicamente difícil e um exercício entediante para o Sr. Maalouf.


“Gozem bem as férias que em Setembro vem aí o diabo"

Pedro Passos Coelho, Julho 2016”,  reunião da bancada parlamentar do PSD

“Da mesma forma que o Bloco de Esquerda e o PCP têm vendido a alma ao diabo, exclusivamente com o objectivo de pôr a direita na rua, eu acho que ao PSD lhe fica muito bem se vender a alma ao diabo para pôr a esquerda na rua”

Manuela Ferreira Leite, Janeiro 2018, entrevista à TSF

O Sr. Maalouf é um bom ouvinte, das poucas palavras que sabe em inglês, há duas que atravessam o Atlãntico e por lá permanecem: “ok” e “mee too”. Um aparte: não deixa de ser curioso que por terras do sr.
Harvey Weinstein, a principal promotora do movimento #meetoo esteja ser investigada por assédio sexual. Deixo toda e qualquer consideração sobre assédio para mais tarde, pois tirando o caso do nosso caro Lobo Antunes, e a fadista do José Cid, não há relatos particularmente estimulantes para figurar para lá da capa de uma revista cor-de-rosa.

 

Entretanto, tivemos que fazer um pequeno desvio de rota, parece que há uma manifestação de estudantes em frente à universidade de Cabul, mais meia hora de viagem. Com alguma sorte avião da Turkish que me vai levar a Ankara, talvez esteja a fazer donuts no espaço aéreo e esteja atrasado. Nesta terra tudo se atrasa, não tanto como os elementos do Ministério Público quando chegam a casa do juiz Rangel, depois dos jornalistas da CMTV, mas quase.

O Sr. Maalouf ficou desempregado, a pequena tabacaria onde trabalhava estava no local errado, exactamente onde um terrorista decidiu exprimir a sua liberdade político-religiosa. Em Kabul, todos os postos de trabalho são, por natureza geográfica, precários.

Não há Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa que valha aos pobres assalariados desta cidade mártir. Aquela máxima social-democrata da satisfação das necessidades individuais e colectivas, da justa distribuição do rendimento ou a realização pessoal são um paradigma que simplesmente não existe por estas bandas. Aqui impera um modelo liberal que seria a Némesis de alguns palhaços alegres com ideias assustadoras sobre mercado laboral.

Finalmente chegamos ao aeroporto. Obviamente o voo está atrasado. O sr. Maalouf simpaticamente ajudou-me a transportar as malas para o check-in. Um dos guardas do aeroporto é primo e a troco de  5 euros, o táxi ficou em segunda fila. Por cá não há nenhum sucedâneo da EMEL, só terroristas e carros -bomba. Convenhamos, sempre fui mais generoso do que a Esperaza da Isabel dos Santos para com a Sonangol!



Sugestão de leitura: para aqueles que quiserem aprofundar os conhecimentos teológicos, Exortação Apostólica Pós-sinodal Amoris Laetitia, para os restantes a bula de um conhecido medicamento para a doença de refluxo gastro-esofágico


Próximo destino:… estrada para Damasco.


Sem comentários: