11/02/2023

…regresso ao passado



Brinca enquanto souberes!

Tudo o que é bom e belo

Se desaprende…

A vida compra e vende

A perdição.

Alheado e feliz,

Brinca no mundo da imaginação,

Que nenhum outro mundo contradiz!


Brinca instintivamente

Como um bicho!

Fura os olhos do tempo,

E à volta do seu pasmo alvar

De cabra-cega tonta,

A saltar e a correr,

Desafronta

O adulto que hás-de ser!

Miguel Torga

11/01/2023

…escada


 Na curva desta escada nos amamos,

nesta curva barroca nos perdemos.
O caprichoso esquema
unia formas vivas, entre ramas.

Lembras-te carne? Um arrepio telepático
vibrou nos bens municipais, e dando volta
ao melhor de nós mesmos,
deixou-nos sós, a esmo,
espetacularmente sós e desarmados,
que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

E mortos, e proscritos
de toda comunhão no século (esta espira
é testemunha, e conta), que restava
das línguas infinitas
que falávamos ou surdas se lambiam
no céu da boca sempre azul e oco?

Que restava de nós,
neste jardim ou nos arquivos, que restava
de nós, mas que restava, que restava?
Ai, nada mais restara,
que tudo mais, na alva,
se perdia, e contagiando o canto aos passarinhos,
vinha até nós, podrido e trêmulo, anunciando
que amor fizera um novo testamento,
e suas prendas jaziam sem herdeiros
num pátio branco e áureo de laranjas.

Aqui se esgota o orvalho,
e de lembrar não há lembrança. Entrelaçados,
insistíamos em ser; mas nosso espectro,
submarino, à flor do tempo ia apontando,
e já noturnos, rotos, desossados,
nosso abraço doía
para além da matéria esparsa em números.

Asa que ofereceste o pouso raro
e dançarino e rotativo, cálculo,
rosa grimpante e fina
que à terra nos prendias e furtavas,
enquanto a reta insigne
da torre ia lavrando
no campo desfolhado outras quimeras:
sem ti não somos mais o que antes éramos.

E se este lugar de exílio hoje passeia
faminta imaginação atada aos corvos
de sua própria ceva,
escada, ó assunção,
ao céu alças em vão o alvo pescoço,
que outros peitos em ti se beijariam
sem sombra, e fugitivos,
mas nosso beijo e baba se incorporam
de há muito ao teu cimento, num lamento.

Carlos Drummond de Andrade 

31/12/2022

...365

 ...em boa verdade já estamos em 2023, pois neste pequeno ponto azul na vastidão do cosmos, metade dos desejos, metades dos sorrisos e alguns sentimentos de tristeza já são iluminados pelo sol. O mesmo em redor do qual que iniciámos mais uma rotação elíptica, No fundo, é apenas a espuma a do tempo que nos ilude, no meio deste percurso (quase penoso) pela magnetosfera.

Seria preciso uma bola de cristal para adivinhar como serão as próximas 365 jogadas, mas há algo que é bastante concreto e quase certo. Só há três formas de terminar o jogo: ou ganha um dos lados do tabuleiro, ou simplesmente chegam a uma acordo satisfatório para ambas as partes e vão a banhos na praia mais próxima.
O meu desejo para 2023 é... continuar a sentir o tempo passar.
Sinal que ainda estou por cá!
br

b

...terra nullius


Após dois anos em que nos refugiamos num mundo quase asséptico, em que quebramos o pacto solene de confraternizarmos até à exaustão, juntemos uma constatação importante: se a pandemia nos tornou reféns das redes sociais, da saudável distância (muitas vezes autoimposta outras imposta), a guerra que agora nos bate à porta, introduz novos condimentos: controlo, vigilância, a eliminação de opiniões contrárias à linha oficial, e mais e mais propaganda e contrapropaganda.

Se durante a pandemia, fechamos salas de espectáculos, silenciamos a arte e a cultura, e mais uma vez combatemos de forma insana quem pensava de forma diferente, agora com ou sem aforismos, nem metáforas fáceis, entramos na dimensão do inenarrável.

Quando do outro lado da “cortina de ferro” (desenterrei este tesourinho do pós-guerra), assistimos à diabolização do Ocidente (comparativamente à aura renascentista da cultura eslava) e, em simultâneo no outro extremo - no Império do Meio (ao lado daquela península onde um louco brinca com misseis balísticos) -  ouvimos o troar da união dos povos progressistas contra o maldito imperialismo ocidental, entramos gradualmente numa retórica que inevitavelmente conduzirá a ao recrudescer da desumanidade e ao colapso da humanidade como a imaginamos durante estas últimas décadas. Sim. Durante as últimas décadas vivemos uma fantasia de enamorados.

E como se tudo não bastasse, para além da fome, da guerra, do desespero de milhões que tentam atravessar fronteiras, ainda assistimos à barbárie perpetuada por fundamentalistas religiosos que interpretam os ditames da religião que confessam, como símios a interpretar a teoria da evolução das espécies do Darwin. Para completar o ramalhete de preciosidades, a proibição das mulheres de frequentar o ensino no Afeganistão, entra num plano que não é possível postular com algum tipo de coerência filosófica.

Assim de súbito, quase apetece rumar em direcção a uma qualquer terra nullius e aí respirar algum tipo de paz interior, longe, muito longe, para lá do horizonte dominado pelos antagonismos entre os povos, dos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas, etc.

Não há forma de entender este admirável mundo novo, nem lendo até à última consoante, até ao último sopro de força.


30/12/2022

...variações sobre um tema

 ...este terá sido, um sério candidato , há já longa lista de piores anos da minha existência. É duro quando somos confrontados com a realidade. Aquela que se esconde [mal] por detrás da zona de conforto.

Eis-nos chegados à tal encruzilha, com 12 passas na mão, 365 dias pela frente, demasiadas incógnitas, um mundo de interrogações, nenhuma certeza ou direção,  


 & uma garrafa de espumante barato!


25/12/2022

..noite de Natal

 

No dia de Natal, tenho em mente, invariavelmente, todos aqueles que asseguram a continuidade de serviços essenciais, para que o outro [todos nós] possa ter algum conforto e assistência. O meu Natal, está com todos aqueles que [sobre]vivem num beco, cobertos de mantas e caixotes de papel sob um céu carregado de chuva, no frio do piso duro que a vida lhes legou.

E em vez dos cânticos eclesiais e a alegria que se percebe, aqui e ali, por detrás dos cortinados ornados de pequenas luzes multicolores, oiço a tristeza escondida de todos aqueles que são companhia da solidão; velhos, jovens, pessoas com as mais diversas fragilidades, longe do país que os viu nascer, fugidos da guerra e de perseguições – expressões deste mundo dito moderno; não interessa a causa das causas, o porquê. Todos aqueles que são transparentes ao olhar da multidão que paira.


Neste Natal, ao cruzar as ruas iluminadas, no meio da confusão frenética das compras de última hora, estou com todos aqueles que circulam carregados com mochilas verdes, amarelas, deixando um rasto [de]cadente, num país estranho que os acolhe a troco de alguma caridade e exclusão.

O meu Natal, está com todos aqueles que estão desempregados, e outros tantos que vivem subjugados à incapacidade de olhar para o dia seguinte sem sentir algum tipo de culpa e vergonha. Neste dia, estou com todos aqueles sem expressão, imersos na escuridão dos dias, noite após noite.

O meu Natal é assim…a olhar para um mundo que não é perfeito, diria quase injusto e profundamente desumano. E para a incapacidade de o mudar.

17/12/2022

...a vida de Brian


Uma mera cortesia transfigurou-se numa espécie de transposição do Rubião em matéria de equidade, de solidariedade. O gesto em si tinha todos os condimentos para ser um penhor digno da época natalícia, mas aquele desvio ideológico, santificado com o mais coerente espírito ultraliberal, quebrou a harmonia do acto e arremessou o pêndulo da justiça social para os antípodas.

Xeque-mate da matemática pura sobre a beleza da epifania.

Se houvesse possibilidade de ilustrar a metáfora, imagine-se os Reis Magos entrarem pelo estábulo adentro e, perante a majestade do cenário, não oferecessem ouro, incenso e mirra, mas apenas uns cupões de desconto para que Maria e José tivessem a oportunidade de adquirir umas papas e um brinquedo para o petiz.

A providência divina, a divindade, e a humanidade ficam reservadas, para aquela criança que, por azar do destino, nasceu no mesmo dia na maternidade privada. A mãe está a acordar do efeito da epidural, e o pai está atrasado no trânsito, mas já enviou mensagem por WhatsApp para o grupo que criou.

O Natal é como a lógica financeira. Tem várias interpretações.

12/12/2022

...o sapateiro

 …quando percorremos as ruas ainda adormecidas pelo sono, há um outro mundo que se revela para lá da penumbra.

Ainda existem velhos sapateiros, que cravam uma agulha no duro couro, para que alguém prolongue a vida de ambos: o artesão e o caminho que os espera.


...também eu vim de uma família de tamanqueiros e sapateiros.

11/12/2022

...estendal

…perdemos. Fomos eliminados por uma equipa que se bateu da mesma forma que também já nos orgulhamos e celebramos.

É o ciclo natural do desporto: perder, empatar e ganhar. Não adianta chorar. Mas podem. Revigora a emoção e exorciza a frustração.

O futebol não é uma luta de vida e de morte na arena perante uma plateia que exige sangue; apenas se exige emoção e entrega. Ela esteve lá, a espaços. Naquele jogo não. Paciência.

O “mata-mata” como simpaticamente o apelidam, é apenas um jogo. Este ficou no intervalo.

A seguir é a segunda-parte.

E outras mais alegrias e tristezas virão. Hoje é dia de arrumar as bandeiras e os cachecóis, manhã serão de novo estendidos.


...por favor

 

A corrupção mina qualquer país, é um cancro que se espalha, na maioria das vezes, de forma silenciosa, outras nem tanto. Por mais surpreendentemente que possa parecer, revela-se em primeiro nas pequenas coisas, situações fugazes. Depois cresce, tal com a sensação que nos alimenta de conseguir sempre algo a “troco de miúdos. Nos estágios iniciais, é o “favor” o “jeitinho”, minudências e carícias de linguagem. Aliás a nossa cultura proverbial está cheia de argumentos a favor quase sacralização da corrupção: “hoje tu, amanhã eu,” “somos uns para os outros” ou então o sacrossanto “quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte ou é burro, ou não tem arte. Quem pensar que um provérbio popular é uma blasfémia que atire a primeira pedra.

A corrupção é sempre tema de programa eleitoral, sejam eles quem governa sejam quem grita do outro lado da barricada. De um lado os chamados “tachos” do outro lado, meia dúzia de embalagens de plástico com aspiração ao doce metal. Não se combate, apenas existe e prolifera. Só mesmo quando sai nos cabeçalhos dos jornais e se torna demasiado inquietante e explícita é que soam as campainhas de alarme. Um dia mais tarde, se chegar à barra do tribunal (normalmente uns anos depois), talvez os prevaricadores sejam punidos ou repreendidos (nem sempre exemplarmente é certo). Mas a sociedade tem memória curta e há por aí muitos casos.

De acordo com o barómetro internacional da matéria - Transparency International - em 2021, ca. 41% dos portugueses tinham a sensação de a corrupção teria aumentado nos anteriores 6 meses. Até podiam ser 69% que o impacte seria semelhante. Mais, 81% dos portugueses admitiam que a corrupção dos governantes era um problema grave e 60% acreditavam que as medidas implementadas para (vamos ser simpáticos!) a mitigar, não eram suficientes. Do outro lado da balança 58% dos portugueses tinham receio de retaliações em caso de denúncia. Sobre este último ponto, realmente não me recordo de ninguém que tenha recebido louvores ou créditos por ter denunciado algo. Pelo contrário, por norma e por uma questão de segurança, as denúncias normalmente são anónimas.

Não será necessário procurar mais evidências nas publicações da especialidade sobre o estado da arte, pois o País - e por via dos factos, todos nós – nunca figurará bem na fotografia.



O mais estranho é que, até temos um enquadramento legal bastante robusto. Leis que permitem válvulas de escape, subterfúgios processuais bastante eficazes para atrasar os processos e a complacência política para não dotar a justiça e quem a aplica, com meios suficientes para a combater. Mas afinal porque é que nos queixamos, se até o nosso código penal possibilita a possibilidade de os tribunais passarem a negociar com os arguidos, não só as penas a que eles podem ser sujeitos a troco de uma negociação – vulgo, troca de favores?

A mim não me surpreende que um ministro seja apanhado em esquemas de corrupção, que determinados cargos de nomeação pública sejam ocupados como troca de favores ou compadrios. O que me surpreende é mesmo a falta de vergonha e a estranha capacidade continuarem a sorrir e rematar que está tudo bem como se fossem damas impolutas ofendidas.

É bonito ver como a corrupção cria laços de grande fraternidade. É como uma família. E pelo que temos visto a família, essa instituição secular tem grande força por cá! Ética é que nem por isso.

iceberg

 

A beleza do iceberg reside na dinâmica do movimento de apenas aquela parte infinitésimal que brilha ao sol, interactuando com a aparente acalmia do mar cristalino. Porém, em termos metafóricos, a robustez que a massa imprime na cadência do tempo, deriva sobretudo da grande massa submersa. Uma espécie de inconsciente que não é directamente acessível, que se oculta para lá das primeiras camadas que o sol consegue penetrar. A partir dai é a escuridão, um mundo de silêncio;




 

Há uma dimensão para lá da luz que, sendo inteiramente revelada, pode tornar-se demasiado avassaladora. Daí a beleza do iceberg. Por mais que admiremos, que o dia suceda à noite e que a lua ascenda ao céu, ele permanece lá, na sua cruel dimensão.

 

“(…) Ecclesia catholica filiorum suorum infirmitates agnoscit et confitetur, conscia eorum peccata totidem esse proditiones et impedimenta perficiendo consilio Salvatoris allata.”

 

Ut unum sint, (Ref.3, item 3)

07/11/2022

...papéis inesperados

 ..se alguém encontrasse numa folha amarelecida pelo tempo presente, um conjunto de textos autoinfligidos por uma máquina de escrever, certamente iria encontrar estórias divagas sobre quiçá, o conto de um certo Paulo Raimundo que um dia acordava secretário-geral de um partido comunista (um pouco como aquele caixeiro-viajante chamado Gregor), talvez a fábula de um secretário-adjunto acusado por estar na órbita de esquemas de duvidosa legalidade (uma reencarnação do sr. Josef K.?) ou, quem sabe, algo menos distópico? suponhamos, um thriller entre um Presidente da República, uma ministra responsável pela execução de fundos europeus e, uma corda (uma atmosfera mais hitchcockiana)!

Sem dúvida que um baú com tesouros literários desta cepa seria porventura, uma óptima sugestão de leitura para uma wishlist de Natal.
Pode ser uma imagem de interiores
Gosto
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06/03/2022

inter arma silent leges

O facto de estarmos nos primeiros anos de um novo século, não determina o fim do conceito de guerra, ou como diria Karl von Clausewitz, a “continuação da política por outros meios”. A crueldade e a violência são características inatas do ser humano; um subterfúgio quando a razão não satisfaz plenamente. A anarquia e o caos são o elixir óptimo para subjugar a vontade de uma das partes em contenda.

 Eis-nos pois às portas de (mais) uma guerra de larga escala na Europa. Sobre a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, apraz-se divagar se faz sentido ou se existe alguma lógica que sustente a pretensão de reconstruir o tal espaço vital idealizado pelo sr. Putin – o “Russkiy Mir”.


Não me recordo ao longo da história de um império que tenha desmoronado e por vontade de alguém tenha sido novamente erguido. E esta não é certamente uma justum bellum e por norma os impérios não passam disso mesmo, um pedaço de história.

 

Quando se realizam grandes projetos, incorre-se na hostilidade dos outros.”

 Tucídides, sec. IV a.C

31/12/2021

2021 Ano Pandémico II

É com alguma acidez natural e ironia, que me despeço deste 2021 [tal como em 2020, o peixe que Ordemalfabétix me impingiu tinha a consistência e a frescura de uma alface de Chernobil]. Até podia ser sádico e relembrar alguns bons momentos do ano [que os houve; com a mesma frequência com que observamos os anéis de Saturno na abóboda celeste], mas não. Foquemo-nos nas últimas horas deste pretérito imperfeito do conjuntivo, pois não há muito predicados para recordar.

Sob todos os pontos de vista, o epitáfio do ano está deveras irritante pois, se no transacto fazia algum sentido ficar no recato da datcha para tentar escapar ao vírus, agora que cavalga impunemente todas as letras do alfabeto grego [e quando este terminar, sugiro desde já a colecção logogramas Han], pouco vale evitá-lo! Com zaragatoa ou escovilhão de casa de banho, ele virá na mesma - sem convite nem aplicação SNS24.


Assim, para me despedir convenientemente deste malfadado MMXXI [não esquecer de comprar uma peça de vestuário nova; uma entre outras superstições idiotas!], o réveillon que está a ser congeminado [gosto desta palavra; é gourmet como caviar de beluga com um flute de Bollinger, mas lato sensu, não passa de um prato de sobremesa com 12 passas e espumante da prateleira de cima da mercearia] vai ser um pouco mais alto, no château, de onde poderemos observar com toda amplitude cénica, a passagem de ano em Sydney, a Times Square Ball a descer e subir e com alguma sorte o fogo de artifício no Burj Khalifa.
No intervalo é preparar as colheres de pau as tampas dos tachos e rezar para que o day-after não ande a chá de cidreira enquanto vejo o maestro Daniel Barenboim a dirigir a Wiener Philharmoniker, no Neujahrskonzert.
Tudo isto por causa de uma noite absolutamente banal igual às restantes 364 do resto do ano mas com um pouco menos de barulho, em que estamos acordados, dormimos e no momento seguinte acordamos.
Sobre o tema resoluções, como já não há muitos bancos na corda bamba – e o que há por aí, é sobretudo empresas onde o Estado infiltrou agentes políticos disfarçados de grandes gestores – não perspectivo grandes considerações nem análises sumárias.
Apenas, peço para fazerem crochet sempre que puderem, ou limpar o cotão por detrás dos móveis, pois nunca se sabe!

Até já 2022

26/12/2021

Natal

 Não recorras ao que já sabes do Natal,

mas coloca-te à espera

daquilo que de repente em teu coração

se pode revelar

Não reduzas o Natal ao enredo dos símbolos

tornando-o um fragmento trémulo sem lugar

no concreto da vida

Não repitas apenas as frases que te sentes obrigado a dizer

como se o Natal devesse preencher um vazio

em vez de o desocultar

Não confundas os embrulhos com o dom

nem a acumulação de coisas com a possibilidade da festa:

o que recebes de graça

só gratuitamente poderás partilhar

Cuida do exterior sabendo que ele é verdadeiro

quando movido por uma alegria que vem de dentro

Uma só coisa merece ser buscada e celebrada, uma só:

o despertar de uma Presença no fundo da alma

Por isso o Natal que é teu não te pertence

Só a outro o poderás pedir. 


José Tolentino Mendonça

25/09/2021

...confortos de alma

 

..se há coisa que me entusiasma é acordar a um certo dia e pensar que daqui a umas horas vou utilizar a caneta para fazer umas cruzes bem bonitas nos quadradinhos sem exceder os limites legais da geometria. Um mísero detalhe que encerra o quão importante passo a ser a partir desse momento, para o equilíbrio do ecossistema político. Por um voto se ganha ou perde, e o gasto em tinta até é supérfluo; comparativamente, o estrago que a escolha pode ter, poderá ter outras incidências geométricas. Por sinal, nesta campanha [tal como tinha sucedido com as anteriores] o nível de discussão foi tão avassalador, tão rico que estou muito inclinado a daqui a quatro anos, propor-me como putativo candidato à Junta de freguesia de um ilhéu nas Desertas, ou quem sabe a algo mais ousado, presidente da Câmara do Ilhéu das Cabras. Uma boa hipótese para um futuro salto para uma aventura mais internacional (sempre fica mais perto de Washigton!).

Não é por nada, mas seria um passo decisivo para a minha afirmação como cidadão interventivo, pró-activo e defensor acérrimo da causa pública. As vantagens seriam mais do que evidentes para todos nós. Por um lado, seria uma forma de descentralizar forma objectivamente específica e factual contraindo a tese que muito se fala mas pouco se concretiza.

Por outro, seria uma forma de rentabilizar de forma segura e transparente o investimento que costuma aparecer de forma simpática no orçamento europeu na sub-secção territórios insulares, mas que normalmente serve para construir hotéis ou cais de acostagem para paquetes de luxo. Ora, quer o Ilhéu das Cabras quer o Ilhéu Deserta Grande, apesar de constituírem excelentes portos de águas profundas, apresentam, características interessantes para a acostagem de embarcações de grande porte que não excedam o tamanho de um bote de borracha.



Outra das promessas que penso constar no manifesto eleitoral que está em reanálise, será a descarbonização de toda a economia local, pela implementação de ninhos em material reciclável para toda a avifauna marinha e a redução da emissão de gases de escape (os botes só poderão acostar se movidos à força de braços ou vela).

Dado que sou uma pessoa de bem, é minha intenção tornar o território livre de armas, em especial bazucas, espingardas ou pistolas de forminantes. Fiquemo-nos pelas atoardas deselegantes vinda de onde vierem, sobretudo dos meus futuros opositores políticos. No máximo serão toleradas fisgas ou arremessos de lava solidificada que por lá não faltam.

Não contem comigo para autocolantes, canetas ou chapéus e bandeirinhas em corsos circenses sob aplausos. Contem comigo para obra feita, nem que sejam umas rotundas ali ou acolá.

Penso que este conjunto de medidas, será mais do que suficiente para assegurar um futuro mais risonho para colocar qualquer uma destas parcelas do território na senda do desenvolvimento sustentado.

Mas amanhã vou mesmo votar primeiro, depois logo se vê. 

20/09/2021

…sem título



 Em meus momentos escuros

Em que em mim não há ninguém,

E tudo é névoas e muros

Quanto a vida dá ou tem,


Se, um instante, erguendo a fronte

De onde em mim sou soterrado,

Vejo o longínquo horizonte

Cheio de sol posto ou nado,


Revivo, existo, conheço;

E, ainda que seja ilusão

O exterior em que me esqueço,

Nada mais quero nem peço:

Entrego-lhe o coração.


(Fernando Pessoa

19/09/2021

..bas fond

 ...passada quase uma semana desde o início da campanha eleitoral confesso que não tive tempo suficiente para aprofundar com a devida subjectividade as diferentes propostas eleitorais que me têm sido presenteadas. Ainda assim, ficou-me já gravado na retina a riqueza e originalidade de um dos temas mais interessantes da campanha [desconfio que se vai prolongar até à noite eleitoral]: a bazuca. O discurso bélico e buliçoso é o máximo denominador comum de quase todos os discursos, facto que demonstra o bas fond da nata política (reflexo da sociedade?). Aliás, se retirarmos do discurso a tríade mágica: o PPR, as promessas de dinheiro fresco para quem votar no partido que está no poder e os novos investimentos que vão ser realizados, mas que curiosamente já lá constavam em anteriores campanhas, ainda assim, ficamos com um conjunto apreciável de boas ideias e iniciativas louváveis [ver detalhe de algumas delas na imagem infra]. Em suma um manancial que se extingue até ao ponto de aridez absoluta.

Aliás a melhor forma de avaliar o quão sublime é o paradoxo deste exercício eleitoral, é tentar interpretar de forma quase clínica a objectividade de algumas coligações eleitorais que ora se digladiam até à morte na arena, para no concelho vizinho estarem unidas de facto até que a morte as separe contra um suposto inimigo comum, que por sinal será o vizinho amado já ali ao lado. O que me espanta é que há pouca gente a dar por isso e interrogo-me se não há aqui uma falha qualquer de percepção ou então um excesso de indiferença.

Nota de auto-flagelação: votar foi em tempos, um exercício agradável, sobretudo quando o discurso e os oradores tinham o dom da palavra e um sentido nobre da causa pública [os resultados é que nem sempre seriam os melhores, mas isso resolvia-se no plebiscito seguinte de forma mecânica]. Nos dias de hoje, é dramático, quase angustiante ouvir e ler determinados candidatos, que mais não são do que a materialização do vazio, ou de formas abstractas do ridículo. Diria que a seita dos idiotas está a propagar-se forma quase viral - abusando da metáfora. E para isso ainda não há profilaxia, nem vacina.


26/05/2021

...a estrada não termina

 

Não tenho por hábito escrever homenagens ou tributos a alguém, mas a Rosinha não era “alguém”. Hoje deixou-nos aquele sorriso encantador. Para quem como eu que comungou pequenos momentos com ela, há uma vontade enorme de relembrar sempre cada minuto, como se fossem horas. A última vez que partilhamos a mesma mesa de conversas foi no jardim da sua casa no verão do ano passado. Depois disso fomos trocando mensagens já com ela hospitalizada e, ultimamente já em casa.

Tinha perfeita noção do seu real estado de saúde, desde o primeiro diagnóstico. Movido pela força dela (única e inexplicável), inconscientemente acreditei num milagre; erro comum para quem sem a lucidez que se exige, sempre manifestou alguma relutância em entender a morte como uma transformação da própria vida física, em algo mais profundo.

A Rosinha era um poço de vida. Provavelmente a pessoa com maior compaixão pelo próximo que conheci até hoje. Uma mãe e esposa que semeou amor e carinho. De entre os traços de carácter que a engrandeciam, a grandeza cívica e humana. Não é preciso fechar os olhos para interiorizar a dimensão do legado que deixa. Era como sempre, inteira nos afectos, corajosa da defesa das suas convicções,integra e cativante. Sempre.



E para sempre, o vazio que agora nos acerca e a saudade que nos desafia será preenchido com a memória e aquele sorriso que nos abraçava a alma.


Marta a tua mãe vive em ti. 

Um grande Abraço Filipe.

 Até já Rosinha

17/05/2021

...nenhum

 um pais sem cultura nem sequer é lugar, é lugar nenhum onde a lei da ignorância impera e governa. A iliteracia é o triunfo brutal dos fracos, desses para quem a cultura é vista como um capricho de uma pequena franja de intelectuais líricos que vivem a vida como um ilídio wagneriano.



Uma civilização é tanto mais retrógrada, quanto mais se submete à fatalidade de o ser humano não ousar sonhar, ser criativo e crítico. Isto é o o que nos distingue dos sonâmbulos que advogam o paraíso futuro, silencioso, monótono e autómato.

O multiculturalismo, a interculturalidade são territórios férteis para a produção artística, pois absorvem o que de melhor cada povo tem para oferecer. Este patchwork de pensamentos e conhecimento sempre acompanhou a renascimento do Homem. Quem opta por formatos pré-estabelecidos e se submete à massificação cristaliza no território do autoritarismo cultural, e vive o vazio intesticial. A cultura é o encontro entre-espaços, entre-tempos, o barro que nos molda, o fio condutor, a pauta que nos faz sonhar, a palavra que nos faz ser.